XVIII 
A  indisciplina  está  por  toda  a  parte  na  Igreja,  comissões  de  padres  enviam  intimações  a  seus  bispos,  os  bispos  desprezam  exortações  pontifícias,  as  próprias  recomendações  e  decisões  conciliares  não  são  respeitadas  e  apesar  disto  não  se  ouve  jamais pronunciar a palavra desobediência salvo para aplicá-la aos católicos que querem continuar fiéis à tradição e simplesmente conservar a fé. A  obediência  constitui  um  assunto  grave,  ficar  unido  ao  magistério  da  Igreja  e  particularmente  ao  Pontífice  Supremo  é  uma  das  condições  da  salvação.  Nós  temos  profunda  consciência  disto  e  também  ninguém  mais  do  que  nós  é  apegado  ao  sucessor  de Pedro atualmente reinante, como nós o fomos a seus predecessores, e eu falo aqui de mim e dos numerosos fiéis rejeitados das igrejas, dos sacerdotes obrigados a celebrar a missa  em  granjas  como  durante  a  Revolução  Francesa,  e  a  organizar  catecismos  paralelos nas cidades e nos campos. Somos apegados ao papa enquanto ele se faz o eco das tradições apostólicas e dos ensinamentos  de  todos  os  seus  predecessores.  É  a  definição  mesma  do  sucessor  de  Pedro guardar este depósito! Pio IX nos ensina na Pastor aeternus: “O Espírito Santo com efeito não foi prometido aos sucessores de Pedro para permitir-lhe publicar, segundo suas revelações,  uma  nova  doutrina  mas  para  conservar  estritamente  e  expor  fielmente,  com  sua assistência, as revelações transmitidas pelos Apóstolos, isto é, o depósito da fé.” A  autoridade  delegada  por  Nosso  Senhor  ao  papa,  aos  bispos  e  ao  sacerdócio  em  geral  está  ao  serviço  da  fé.  Servir-se  do  direito,  das  instituições,  da  autoridade  para  aniquilar   a   fé   católica   e   não   mais   comunicar   a   vida,   é   praticar   o   aborto   ou   a   contraconcepção espirituais. É por isso que estamos submissos e prontos a aceitar tudo o que  é  conforme  à  nossa  fé  católica,  tal  como  foi  ensinada  durante  dois  mil  anos,  mas  recusamos tudo o que lhe é contrário. Pois enfim, um problema grave se colocou à consciência e à fé de todos os católicos durante o pontificado de Paulo VI. Como é que um papa, verdadeiro sucessor de Pedro, assegurado  pela  assistência  do  Espírito  Santo,  pôde  presidir  à  mais  profunda  e  mais  ampla  destruição  da  Igreja  na  sua  história  num  espaço  de  tão  pouco  tempo,  coisa  que  nenhum heresiarca jamais conseguiu fazer? A esta pergunta será bem preciso responder um dia. Na primeira metade do século V, são Vicente de Lerins, que foi soldado antes de se consagrar a Deus e declara ter sido “agitado muito tempo sobre o mar do mundo antes de se  recolher  ao  porto  da  fé”,  falava  assim  do  desenvolvimento  do  dogma:  “Não  haveria  nenhum  progresso  da  religião  na  Igreja  de  Cristo?  Havê-los-á  certamente  e  muito  importantes,  de  tal  maneira  que  seja  um  progresso  da  fé  e  não  uma  mudança.  Importa  que  cresçam  abundante  e  intensamente  em  todos  e  em  cada  um,  nos  indivíduos  como  nas  Igrejas,  no  decurso  das  épocas,  a  inteligência,  a  ciência,  a  sabedoria,  contanto  que  seja na identidade do dogma, dum mesmo pensamento”. Vicente conhecia o impacto das heresias e deu uma regra de conduta ainda sempre boa após mil e quinhentos anos: “Que fará  então  o  cristão  católico  se  alguma  parcela  da  Igreja  acaba  por  desligar-se  da  comunhão,   da   fé   universal?   Que   outro   partido   tomar   senão   preferir   ao   membro   grangrenado e corrompido o corpo em seu conjunto que é são? E se algum contágio novo se  esforça  por  envenenar,  não  mais  uma  pequena  parte  da  Igreja,  mas  a  Igreja  inteira  duma só vez, então seu grande cuidado será apegar-se à antigüidade, que evidentemente não pode mais ser seduzida por nenhuma novidade perigosa.” Nas  ladainhas  das  Rogações,  a  Igreja  nos  faz  dizer:  “Nós  vos  suplicamos,  Senhor,  manter  na  vossa  santa  religião  o  Soberano  Pontífice  e  todas  as  ordens  da  hierarquia eclesiástica”. Isto quer bem dizer que uma tal desgraça pode suceder. Na Igreja não há nenhum direito, nenhuma jurisdição que possa impor a um cristão uma diminuição de sua fé. Todo o fiel pode e deve resistir, apoiado no catecismo de sua infância, a quem quer que atentar contra a sua fé. Se ele se encontra em presença duma ordem que a põe em perigo de corrupção, a desobediência é um dever imperioso. É  porque  julgamos  que  nossa  fé  está  em  perigo  pelas  reformas  e  as  orientações  post-conciliares,   que   temos   o   dever   de   desobedecer   e   de   conservar   a   tradição.   Acrescentemos o seguinte: é o maior serviço que podemos prestar à Igreja e ao sucessor de  Pedro  recusar  a  Igreja  reformada  e  liberal.  Jesus  Cristo,  Filho  de  Deus  feito  homem,  não é nem liberal nem reformável. Eu  ouvi  por  duas  vezes  enviados  da  Santa  Sé  me  dizerem:  ”O  reinado  social  de  Nosso  Senhor  não  é  mais  possível  em  nosso  tempo,  é  preciso  aceitar  definitivamente  o  pluralismo das religiões.” Eis exatamente o que eles me disseram. Pois  bem,  eu  não  sou  desta  religião.  Não  aceito  esta  nova  religião.  É  uma  religião  liberal,  modernista,  que  tem  seu  culto,  seus  sacerdotes,  sua  fé,  seus  catecismos,  sua  Bíblia  ecumênica  traduzida  em  comum  por  católicos,  judeus,  protestantes,  anglicanos,  jogando  com  pau  de  dois  bicos,  dando  satisfação  a  todo  o  mundo,  sacrificando  muito  freqüentemente a interpretação do magistério. Nós não aceitamos esta Bíblia ecumênica. Há a Bíblia de Deus, é Sua Palavra a qual não temos o direito de misturar com a palavra dos homens. Quando  eu  era  criança,  a  Igreja  tinha  por  toda  parte,  a  mesma  fé,  os  mesmos  sacramentos,  o  mesmo  sacrifício  da  missa.  Se  me  houvessem  dito  então  que  isto  mudaria,  eu  não  teria  podido  acreditar.  Em  toda  a  extensão  da  cristandade  se  rezava  a  Deus da mesma maneira. A nova religião liberal e modernista semeou a divisão. Cristãos estão divididos no seio duma mesma família devido a esta confusão que foi instaurada, não vão mais à mesma missa, não lêem mais os mesmos livros. Sacerdotes não  sabem  mais  o  que  fazer:  ou  obedecem  cegamente  ao  que  seus  superiores  lhes  impõem e perdem de alguma sorte a fé de sua infância e de sua juventude, renunciam às promessas   que   fizeram   no   momento   de   sua   ordenação,   prestando   o   juramento   antimodernista; ou resistem, mas é com a impressão de se separar do papa, do vigário de Cristo. Nos dois casos, que dilaceração! Muitos sacerdotes morreram prematuramente de desgosto. Quantos  outros  foram  obrigados  a  abandonar  suas  paróquias  nas  quais,  há  anos,  eles  exerciam  seu  ministério,  expostos  à  perseguição  aberta  de  sua  hierarquia  e  apesar  do apoio dos fiéis aos quais se arrancava o seu pastor. Tenho debaixo dos olhos as despedidas comoventes de um deles à população das duas paróquias das quais era vigário: “Na sua conversa de... o senhor bispo me dirigiu um ultimatum:  aceitar  ou  recusar  a  nova  religião;  eu  não  me  poderia  esquivar.  Então  para  continuar fiel ao compromisso de meu sacerdócio, para continuar fiel à Igreja eterna... fui constrangido  e  forçado,  contra  a  minha  vontade,  a  retirar-me...  A  simples  honestidade  e  sobretudo  minha  honra  sacerdotal  me  criam  uma  obrigação  de  ser  leal,  precisamente  nesta  matéria  de  gravidade  divina  (a  missa)...  É  esta  prova  de  fidelidade  e  de  amor  que  devo  dar  a  Deus  e  aos  homens,  a  vós  em  particular  e  é  a  respeito  dela  que  eu  serei  julgado  no  último  dia,  como,  aliás,  todos  aqueles  a  quem  foi  confiado  este  mesmo  depósito”. Na diocese de Campos, no Brasil, a quase totalidade do clero foi expulsa das igrejas após  a  saída  de  Dom  Castro  Mayer,  por  não  querer  abandonar  a  missa  de  sempre,  tal  como a celebravam ainda até uma data recente. A divisão afeta as mínimas manifestações de piedade. Em Val-de-Marne, o bispado fez  expulsar  pela  polícia  vinte  e  cinco  católicos  que  recitavam  o  rosário  numa  igreja  particular  de  vigário  titular  há  muitos  anos.  Na  diocese  de  Metz,  o  bispo  fez  intervir  o  prefeito  comunista  para  que  fosse  suspenso  o  empréstimo  de  um  local  concedido  a  um  grupo de tradicionalistas. No Canadá seis fiéis foram condenados pelo tribunal, que a lei deste país permite ter competência nesta espécie de questão, por se haverem obstinado a   comungar   de   joelhos.   O   bispo   de   Antigonish   os   havia   acusado   de   “perturbar   voluntariamente  a  ordem  e  a  dignidade  dum  serviço  religioso”.  Os  “perturbadores”  foram  postos pelo juiz em liberdade sob vigilância durante seis meses! Ao mesmo tempo o bispo proíbe   aos   cristãos   de   dobrarem   o   joelho   diante   de   Deus!   No   ano   passado,   a   peregrinação  dos  jovens  a  Chartres  terminou  com  uma  missa  nos  jardins  da  catedral,  estando esta interditada à missa de são Pio V. Quinze dias mais tarde, as portas estavam abertas de par a par para um concerto espiritual no decorrer do qual foram interpretadas danças por uma antiga carmelita. Duas  religiões  se  afrontam;  nós  nos  encontramos  numa  situação  dramática,  não  é  possível  deixar  de  fazer  uma  escolha,  mas  esta  escolha  não  é  entre  a  obediência  e  a  desobediência. O que se nos propõe, aquilo a que se nos convida expressamente, porquê nos perseguem, é escolher um simulacro de obediência. O Santo Padre, com efeito, não nos pode pedir que abandonemos nossa fé. Nós  escolhemos  então  conservá-la  e  não  podemos  enganar-nos  atendo-nos  àquilo  que a Igreja ensinou durante dois mil anos. A crise é profunda, sabiamente organizada e dirigida, por sinal que se pode verdadeiramente crer que o chefe do empreendimento não é um homem, mas o próprio Satã. Ora é um golpe magistral de Satã ter chegado a fazer os  católicos  desobedecerem  a  toda  a  tradição  em  nome  da  obediência.  Um  exemplo  típico é fornecido pelo aggiornamento das sociedades religiosas: por obediência se faz os religiosos e religiosas desobedecerem às leis e constituições de seus fundadores as quais eles  juraram  observar  quando  fizeram  sua  profissão.  A  obediência,  neste  caso,  deveria  ser  uma  recusa  categórica.  A  autoridade,  mesmo  legítima,  não  pode  ordenar  um  ato  repreensível,  mau.  Ninguém  pode  obrigar  qualquer  pessoa  a  transformar  seus  votos  monásticos  em  simples  promessas.  Igualmente  ninguém  pode  fazer  que  nos  tornemos  protestantes ou modernistas. Santo  Tomás  de  Aquino  a  quem  se  é  preciso  sempre  referir,  chega  mesmo  a  perguntar-se  na  Suma  Teológica  se  a  “correção  fraterna”  prescrita  por  Nosso  Senhor  pode-se  exercer  em  relação  aos  superiores.  Após  ter  feito  todas  as  distinções  úteis  ele  responde: “Pode-se exercer em relação aos superiores quando se trata da fé.” Se  nos  mantivéssemos  mais  firmes  neste  capítulo  evitaríamos  vir  a  assimilar  bem  lentamente as heresias. No começo do século XVI, os ingleses conheceram uma aventura do gênero daquela que nós vivemos, com esta diferença, que ela começou por um cisma. Quanto  ao  resto,  as  semelhanças  são  espantosas  e  próprias  a  fazer-nos  refletir.  A  nova  religião,  que  tomará  o  nome  de  anglicanismo  começa  pela  ofensiva  contra  a  missa,  a  confissão  pessoal,  o  celibato  eclesiástico.  Henrique  VIII,  se  bem  que  assumiu  a  enorme  responsabilidade de separar seu povo de Roma, recusa as sugestões que lhe são feitas, mas,  no  ano  seguinte  ao  da  sua  morte,  uma  ordenação  autoriza  o  uso  do  inglês  na  celebração da missa. As procissões são interditadas, um novo ordo é imposto, o Order of Communion, no  qual  o  ofertório  não  existe  mais.  Para  tranqüilizar  os  cristãos  uma  outra  ordenação  proíbe  toda  a  sorte  de  mudanças,  enquanto  que  uma  terceira  permite  aos  vigários  suprimir  as  estátuas  dos  santos  e  da  Santíssima  Virgem  nas  igrejas.  Obras  de  arte   veneráveis   são   vendidas   a   comerciantes,   tudo   como   hoje   nos   antiquários   e   bricabraques. Alguns  bispos  apenas  fizeram  notar  que  o  Order  of Communion causava  dano  ao  dogma  da  presença  real,  dizendo  que  Nosso  Senhor  nos  dá  seu  corpo  e  seu  sangue  espiritualmente. O Confiteor traduzido em língua vernácula era recitado ao mesmo tempo pelo  celebrante  e  pelos  fiéis,  ele  servia  de  absolvição.  A  missa  era  transformada  em  refeição “turning into a Communion”. Mas mesmo os bispos lúcidos aceitavam finalmente o  novo  livro  para  manter  a  paz  e  a  união.  É  exatamente  pelas  mesmas  razões  que  a  Igreja  post-conciliar  queria  impor-nos  o  novo  ordo.  Os  bispos  ingleses  afirmaram,  no  século  XVI,  que  a  missa  era  um  “memorial”!  Uma  farta  propaganda  fez  passar  as  maneiras de ver luteranas para o espírito dos fiéis; os pregadores deviam ser aprovados pelo governo. Durante o mesmo tempo, o papa não é mais chamado senão o “bispo de Roma”, ele não é mais o pai e sim o irmão dos outros bispos e no caso presente, o irmão do rei da Inglaterra  que  se  instituiu  chefe  da  Igreja  nacional.  O  Prayer  Book  de  Crammer  foi  composto  misturando-se  partes  da  liturgia  grega  com  a  liturgia  de  Lutero.  Como  não  pensar em Mons. Bugnini redigindo a missa dita de Paulo VI com a colaboração de seus “observadores”  protestantes  adidos  qualificados  ao  Conselho  para  a  reforma  da  liturgia?  O Prayer  Book  começa  por  estas  palavras:  “A  Ceia  e  Santa  Comunhão  comumente  chamada missa...” prefiguração do famoso artigo 7 da Institutio Generalis do Novo Missal, retomado pelo Congresso Eucarístico de Lourdes em 1981: “A Ceia do Senhor, chamada de  outra  maneira  a  missa...”  A  destruição  do  sagrado  da  qual  eu  falava  mais  acima,  estavam   incluídas   também   na   reforma   anglicana:   as   palavras   do   Canon   deviam   obrigatoriamente ser ditas em voz alta, assim como acontece nas “Eucaristias” atuais. O Prayer Book foi também aprovado pelos bispos “para conservar a unidade interior do  reino”.  Os  sacerdotes  que  continuavam  a  dizer  “a  missa  antiga”  incorriam  em  penas  que  iam  da  perda  de  seus  proventos  à  exoneração  pura  e  simples,  em  caso  de  reincidência, e à prisão perpétua. É preciso reconhecer que em nossos dias não se põem mais na prisão os sacerdotes “tradicionalistas”. A  Inglaterra  dos  Túdores  descambou  para  a  heresia  sem  bem  se  dar  conta,  aceitando  a  mudança  sob  pretexto  de  adaptar-se  às  circunstâncias  históricas  do  tempo,  tendo  à  frente  seus  pastores.  É  hoje  toda  a que  corre  o  risco  de  tomar  o  mesmo caminho e vós pensastes que se nós, que temos uma certa idade, corremos um perigo  menor,  as  crianças,  os  jovens  seminaristas  formados  nos  novos  catecismos,  na  psicologia  experimental,  na  sociologia,  sem  nenhuma  tintura  de  teologia  dogmática  e  moral,  de  direito  canônico,  de  história  da  Igreja,  são  educados  numa  fé  que  não  é  a  verdadeira,  encontram  normais  as  noções  neo-protestantes  que  se  lhes  inculcam?  Que  será da religião de amanhã se nós não resistimos? Vós tereis a tentação de dizer: “Mas que podemos fazer? É um bispo que diz isto ou aquilo.  Vede,  este  documento  vem  da  comissão  da  catequese,  ou  duma  outra  comissão  oficial.” Portanto, nada mais vos resta senão perder a fé. Mas não tendes o direito de reagir assim.  São  Paulo  nos  advertiu:  “Se  mesmo  um  anjo  viesse  do  céu  dizer-vos  outra  coisa  do que vos ensinei, não o escuteis.” Tal é o segredo da verdadeira obediência.
 
 
 
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