7 de janeiro de 2015

Sermão para a Festa de São Silvestre 31 de dezembro – Padre Daniel Pinheiro IBP

[Sermão] As provações e as graças no ano de 2014

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave Maria. […]

Estamos no último dia do ano de 2014. Foi um ano de provações. Provações em nosso país com as eleições, sem muita alternativa para um candidato realmente bom e com a vitória da pior dentre os que tinham chances. Maiores dificuldades e restrições impostas pelo governo à prática de nossa religião podem estar à vista. Uma oposição cada vez mais ferrenha à lei natural e à lei divina também. Precisamos rezar pelo nosso país e fazer a nossa parte, começando por nós mesmos e pelas nossas famílias. As dificuldades, as provações são também meios que Deus nos dá para exercer a virtude, para suportar os males com paciência, para vencê-los com a virtude contrária.
Turbulência também na Santa Igreja Católica, em particular com o Sínodo dos Bispos. Que Bispos da Santa Igreja Católica cogitem reconhecer atos e uniões contra a natureza era inimaginável há alguns anos. Que se pudesse admitir à comunhão quem se encontra objetivamente em estado de pecado mortal, idem. Confundir misericórdia com abandono da lei de Cristo e da Igreja, igualmente. Mas, aí também, vimos prelados fiéis a Cristo se levantarem contra a demolição da moral natural e cristã. Em 2015, teremos nova etapa do Sínodo sobre a família. Mais uma vez, precisamos rezar, para que Deus desfaça os planos dos ímpios, como disse Dom Athanasius Schneider. Devemos cuidar das nossas famílias, combater o bom combate e guardar a fé e a caridade. De pouco adianta ser um paladino da Missa Tradicional e da moral católica, se com os nossos pecados mortais não combatidos seriamente cooperamos para o reino do demônio. Não é suficiente louvar a Cristo com a boca, se o crucificamos com nossos pecados. É preciso amar e defender e propagar a liturgia tradicional, bem como defender a moral católica, sobretudo sendo fiel aos mandamentos de Cristo. Devemos nutrir a nossa fé e a nossa alma não com facebook ou fotos de internet ou com um site qualquer, mas com os tesouros da espiritualidade e da fé católicas: os bons livros, que são nossos melhores amigos.
Essas provações, permitidas por Deus, devemos aproveitá-las para a nossa santificação. Tudo cooperará, efetivamente para o bem do justo (Rom. VIII, 28), que nos bens e nos males encontrará meio para sua santificação e para estender o reino de Cristo na sua alma e na sociedade.
Foi o ano em que procuramos apontar três erros muito em voga entre os católicos mais sérios: 1) A redução dos problemas ao mero comunismo, esquecendo-se do liberalismo e do modernismo, esquecendo-se da crise da Igreja. A mera redução do problema a algo político ou puramente natural, esquecendo-se de que se trata de um combate espiritual, sobrenatural. 2) O aparecionismo, que é o apego a aparições que não são devidamente aprovadas pela Igreja ou o apego desordenado mesmo àquelas aprovadas pela Igreja. Quem sabe como virá o triunfo do Imaculado Coração mencionado por Nossa Senhora em Fátima? Virá, talvez, com os católicos procurando fazer a parte deles, talvez com cada um de nós procurando viver realmente como bons católicos, com a fé firme e as boas obras. 3) O culto de personalidade, que consiste em tornar uma pessoa a referência única para a solução de todos os problemas, em substituição à Igreja, à hierarquia, e ter uma reverência desordenada a essa pessoa, além de impedir, muitas vezes, as orações de florescerem e famílias católicas de se formarem.
Não devemos ser, porém, pessimistas desesperados. Nem otimistas ingênuos. Devemos ser realistas com esperança sobrenatural.
Assim, tivemos nesse ano grande alegrias, é evidente. Muitas crianças nasceram no apostolado, e algo em torno de 20 batizados foram realizados. Semana santa na Capela Nossa Senhora das Dores, 7 crianças fizeram primeira comunhão. Bênção da Capela e Crismas por Dom José Aparecido. Mais Missas públicas, devoção das primeiras sextas-feiras e dos primeiros sábados. Primeira festa de Nossa Senhora das Dores com a presença do Cardeal Dom José Falcão. Agora, nos falta ouvir os sinos repicando. E rezemos, para que se for a vontade de Deus, possamos ter mais um padre conosco no decorrer do próximo ano, para nos auxiliar na busca pela salvação da nossa alma. A expansão, ainda que pouco a pouco e com obstáculos, da Missa Tradicional e da doutrina católica são inegáveis. Devemos agradecer a Deus por essas grandes graças recebidas. Começamos nosso ministério sacerdotal há dois anos e meio com 30 pessoas. Hoje, nas Missas dominicais, somos em média 200. Quase 7 vezes mais. Por causa do Padre? Por causa dos fiéis? Por causa dessa capela? Não, mas por causa da Missa, por causa dos sacramentos, por causa da verdade católica.
É nisso que temos que parar e refletir, caros católicos. Como anda a minha alma? O que fiz nesse ano para santificá-la? Aproveitei essa liturgia imemorial, esse tesouro da fé e da piedade para aproximar-me de Deus? Ou acomodei-me? Aproveitei os sacramentos e sacramentais? Comunguei com boas disposições, com fervor? Procurei a confissão com boa disposição e com frequência? Rezei o Santo Terço diariamente? Tive uma devoção real e não meramente sentimental a Nossa Senhora? Procurei pensar nas coisas do alto?
Aproveitemos esse próximo ano que se inicia e peçamos a Deus a fidelidade à sua graça. Peçamos a Deus a docilidade diante dos ensinamentos da sagrada liturgia. Peçamos a Deus a graça de receber bem e com frequência os sacramentos. Peçamos a graça de fortalecer a nossa fé diante das tormentas. Peçamos a Ele a santificação de nossas famílias, dos cônjuges e das crianças. Peçamos a Ele, com toda a força da nossa alma, a graça de sermos verdadeiramente santos.
Agradeçamos a Deus pelo ano que passou, também pelas cruzes. A todos, um santo ano de 2015.
Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

6 de janeiro de 2015

Sermão para o Domingo dentro da Oitava do Natal – Padre Daniel Pinheiro IBP

[Sermão] Para entender o presépio de Belém

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

Escutemos, caros católicos, atentamente e com devoção o que o Menino Jesus tem para nos ensinar, reclinado na manjedoura em Belém. É simples, mas extremamente profundo e útil para o bem de nossa alma.
O Menino Jesus nos ensina por meio da noite. Ele nasceu em uma das noites mais longas do ano e à meia-noite. Ele fez isso para que seu nascimento fosse conhecido de um pequeno número, nos ensinando a humildade, mas também para nos ensinar que Ele é a luz do mundo, que vem a esse mundo para iluminar a todos os homens, que jaziam nas trevas do pecado. A luz resplandece nas trevas, como nos diz o Prólogo de São João.
O Menino Jesus nos fala por meio do feno, do frio, dos panos que o envolvem, do desconforto do estábulo. Com todas essas coisas, Ele nos ensina a mortificação, sem a qual pouco podemos fazer no caminho da salvação.
O Menino Jesus nos fala por meio do boi e do burro ali presentes. Isaías havia dito: o boi conhece o seu possuidor, e o asno, o estábulo do seu dono. Aí no boi e no asno estão significados os judeus e os pagãos. No asno, os pagãos porque eles, em particular, não compreenderam, antes da vinda de Cristo, a honra a que tinham sido elevados por Deus e haviam se tornado como asnos por causa de seus pecados e falsas religiões (referência ao Salmo 48, 13 e 21). Nada mais natural, em um estábulo, que a presença de um boi e de um burro, sobretudo em tempo de censo, no qual havia muitos viajantes que usavam bois e burros para se deslocarem a suas cidades de origem. Com a presença deles, a Divina Criança mostra que veio salvar a todos, judeus e gentios, e que Ele é o Rei de todos os povos.
O Menino Jesus nos fala por meio da manjedoura. A manjedoura é o local em que os animais do estábulo se alimentam. A Divina Criança ensina que será para a nossa alma verdadeiro alimento. “Eu sou o Pão Vivo que desceu dos céus e quem comer desse Pão viverá eternamente”, dirá Ele mais tarde.
O Menino Jesus nos fala por meio do estábulo. Toda a Terra e tudo o que ela contém pertence a essa criança. Ao querer nascer no estábulo, então, a Divina Criança nos ensina o desapego dos bens desse mundo… Ele nos ensina a usar dos bens que possuímos, sejam grandes ou pequenos, para servi-lo, unicamente. Ele nos ensina a pobreza de espírito, que faz de Deus o nosso verdadeiro tesouro. Sem esse desapego dos bens terrenos ninguém pode salvar-se.
O Menino Jesus nos fala por meio da cidade em que nasceu. Belém é a cidade de Davi. Nascendo em Belém, Ele nos ensina que é o filho de Davi, o Messias prometido desde a queda de Adão. E Belém significa casa do Pão. O Menino Deus nos ensina, insistindo, que Ele vai se tornar o alimento de nossas almas pela Santa Eucaristia, prevendo já o escândalo de alguns com relação a isso ou prevendo a falta de reverência de nossos dias para com o Santíssimo Sacramento.
O Menino Deus nos fala por meio do censo estabelecido pelo Imperador e nos mostra que Ele, Jesus, é o Senhor da história e que mesmo os mais poderosos desse mundo estão sob seu domínio, pois Ele quis que o Imperador fizesse o censo para poder nascer em Belém e cumprir as profecias. O mundo está em paz, para a chegada do Rei da verdadeira paz, que nos torna possível novamente a amizade com Deus. O Império Romano estabeleceu a Pax Romana em seus territórios. A facilidade de locomoção dada pelo domínio do Império Romano vai permitir a difusão rápida do Evangelho. A boa filosofia grega permitirá, ainda que com relutâncias, a aceitação da revelação divina. O Verbo de Deus dispôs tudo sabiamente para a sua Encarnação. O nascimento de Cristo divide a história: antes e depois de Cristo. Não como um simples fato histórico, mas como o centro da história. Na gruta em Belém, apareceu a bondade e o amor do Salvador nosso Deus pelo homem e apareceu não por nossos méritos, mas por sua misericórdia. Esse acontecimento, aparentemente tão singelo, tão simplório, mudou completamente a história da humanidade. Esse acontecimento e suas consequências, culminando com a paixão, morte, ressurreição e ascensão de Cristo, é o centro da história. Quão vazia e tenebrosa seria a história da humanidade sem o nascimento de Cristo. Não teria havido os patriarcas, os profetas e tantos justos do Antigo Testamento. Não teria havido os santos, imitadores de Cristo, não teria havido tanta virtude e virtude em grau heroico. Não teria havido a Santa Igreja com sua celestial doutrina, com seus sacramentos e com todo o bem que fez e faz ao longo da história, tanto na ordem espiritual quanto material. Não haveria a civilização cristã, em que a Igreja é a alma do Estado. Quão vazia e tenebrosa seria a história sem esse acontecimento aparentemente singelo e simplório na gruta de Belém. É preciso que nós tenhamos o sentido cristão da história.
O Menino Jesus nos fala por meio dos pastores. São eles os primeiros homens a serem avisados da boa-nova. Por que são pobres? Sim, mas pobres de espírito. São os primeiros porque são judeus e judeus que vigiavam o rebanho, trabalhando mesmo durante a madrugada. Convinha que o nascimento do Messias fosse anunciado primeiramente aos judeus, que haviam recebido as promessas, e que tinham, à época, a verdadeira religião. Com a presença desses pastores, o Menino Deus nos ensina que devemos vigiar e orar sempre, para podermos alcançar a verdadeira alegria. Esses pastores representam também os pastores da Igreja, o clero, que recebe a doutrina sagrada da Igreja para transmiti-la aos outros.
O Menino Jesus fala por meio do Anjo. O anjo, provavelmente São Gabriel, se alegra com o nascimento de Jesus e o anuncia aos pastores e junto com grande multidão de anjos canta a Glória de Deus e sua infinita bondade. O anjo se alegra e se rejubila, pois com o nascimento do Menino Jesus, Deus será mais amado, em pouco tempo, do que o foi durante os milhares de anos que precederam o nascimento de Jesus. Com a presença do Anjo, a Divina Criança nos ensina a alegria de exercer o apostolado, de ajudar os outros a conhecer, amar e servir a Deus. Ele nos ensina a alegria que é a salvação.
O Menino Jesus fala por meio de São José. É um carpinteiro o responsável pela Sagrada Família. Com a presença de São José no estábulo, a divina criança nos ensina a servir e defender prontamente a Cristo e a Nossa Senhora. Ele nos ensina a defender a Igreja e a servi-la com extrema fidelidade e bravura, pois nesse momento poderíamos dizer que a Igreja se resumia aos três: São José, Nossa Senhora e o Menino Jesus.
O Menino Jesus fala por meio de Maria Santíssima. É uma Virgem que se torna Mãe de Deus. Com a presença de Nossa Senhora no estábulo, Ele nos ensina que a castidade, a pureza, a submissão completa à vontade de Deus traz grandes frutos. É a virtude que traz grandes frutos e frutos de vida eterna. A santidade de Nossa Senhora trouxe a salvação, que é Cristo, não só para ela, mas para todos os homens.
O Menino Jesus, por quem todas as coisas foram feitas, já que Ele é o Verbo de Deus, governa também os astros do céu. A estrela de Belém que guia os reis magos das trevas do paganismo à luz do cristianismo, das terras estrangeiras ao estábulo de Belém, é obra do Menino Jesus.
O Menino Jesus fala também por meio dos Reis Magos, primícias dos gentios. Mago, no oriente antigo, significa a mesma coisa que sábio na Roma Antiga, filósofo na Grécia, ou escriba em Israel. Portanto, os Magos não eram astrólogos, nem adivinhadores, nem feiticeiros. A graça de serem os primeiros gentios a adorarem Cristo não poderia ser dada a adoradores do demônio, como o são os astrólogos, os adivinhadores, os feiticeiros. Era comum naquela época, que os sábios fossem também governantes, ao menos de uma parcela do povo. Por isso, são chamados de Reis Magos. Os magos eram, então, sábios, que praticavam a lei natural e cultivavam as ciências, em particular a astronomia. Sabiam, então, auxiliados pela graça, que a estrela que surgiu era a estrela do Messias, como eles mesmos dizem: “vimos sua estrela no Oriente”. Os Reis Magos sabiam que não se tratava de um fenômeno natural, mas de uma estrela milagrosa, a estrela anunciada pela profecia. Eles trazem ouro porque reconhecem que Cristo tem autoridade sobre eles: Cristo é Rei. Eles trazem incenso porque sabem que Cristo é Deus e incenso só se oferece a Deus. Eles trazem mirra porque sabem que Cristo é homem e que morrerá um dia. Seu corpo deverá ser perfumado quando morrer.
O Menino Jesus escolheu todas essas circunstâncias para nos ensinar que Ele é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus: esse Menino  é o Senhor dos anjos e dos homens, das cidades, dos astros do céus, dos animais, de todos os elementos da natureza. Ao mesmo tempo, Ele nasce em um estábulo, com frio, enrolado somente por alguns panos, recusado pelos homens. O Menino Jesus escolheu todas essas circunstâncias para que reconheçamos nEle o nosso Salvador.
Se o Menino Deus nos ensina tantas coisas e sofre tanto por nós, Ele nos pede uma só: que o amemos em troca, praticando o que Ele nos ensina.  E Ele pede que o amemos profundamente. O Verbo se fez carne. Deixemos, então, o nosso coração de pedra, insubmisso a Deus. Tenhamos um coração de carne. A Igreja nos dá o exemplo de amor a Cristo. No primeiro dia após o Natal, ela comemora a festa de Santo Estevão, primeiro mártir, nos mostrando que nosso amor por Ele deve ir até a efusão do sangue, até o martírio, se necessário for. No segundo dia após o Natal, a Igreja comemora São João, o único apóstolo não mártir, para nos mostrar o amor de Deus pela confissão da fé, pelo combate aos erros, pela prática das virtudes, em particular pela prática da caridade fraterna – baseada sempre no amor a Deus – e pela prática da castidade.
O Menino Jesus nasceu para que possamos amar a Deus sobre todas as coisas, retribuindo seu amor infinito. Prostremo-nos diante do presépio e peçamos ao Menino Jesus a graça de amá-lo e de perseverar nesse amor até o final de nossas vidas.
Grande alegria, caros católicos! Um pequenino nos nasceu, o Filho de Deus nos foi dado.
 Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem - Parte 10

Artigo II

As práticas da verdadeira devoção à Santíssima Virgem

§ I. As práticas comuns.

115. Há muitas práticas interiores da verdadeira devoção à Santíssima Virgem. As principais são, abreviadamente, as seguintes:
1. Honrá-la, como a digna Mãe de Deus, com o culto de hiperdulia, isto é, estimá-la e honrá-la sobre todos os outros santos, como a obra-prima da graça e a primeira depois de
Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. 2. Meditar suas virtudes, seus privilégios e seus atos. 3. Contemplar suas grandezas. 4. Fazer-lhe atos de amor, de louvor e reconhecimento. 5. Invocá-la cordialmente. 6. Oferecer-se e unir-se a ela. 7. Em todas as ações ter a intenção de agradar-lhe. 8. Começar, continuar, e acabar todas as ações por ela, nela, com ela e para ela, a fim de fazê-las por Jesus Cristo, em Jesus Cristo, com Jesus Cristo e para Jesus Cristo, nosso último fim. Mais adiante explicaremos esta última prática (Ver cap. VIII, art, II).

* * *

116. A verdadeira devoção à Santíssima Virgem tem também muitas práticas exteriores, das quais as principais são:
1º Alistar-se em suas confrarias e ingressar em suas congregações; 2º ingressar numa das ordens instituídas em sua honra; 3º publicar seus louvores; 4º dar esmolas, jejuar e mortificar-se o espírito e o corpo em sua honra; 5º trazer consigo suas insígnias, como o santo rosário ou o terço, o escapulário ou a cadeiazinha; 6º recitar com devoção, atenção e modéstia ou o santo rosário, composto de quinze dezenas de Ave-Maria, em honra dos quinze mistérios principais de Jesus Cristo, ou o terço de cinco dezenas, contemplando os cinco mistérios gozosos: anunciação, a visitação, a natividade de Jesus Cristo, a purificação e o encontro de Jesus no templo; os cinco mistérios dolorosos: a agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras, sua flagelação, a coroação de espinhos, Jesus levando cruz, e a crucificação; os cinco mistérios gloriosos: a ressurreição de Jesus, sua ascensão, a descida do Espírito Santo, a assunção da Santíssima Virgem em corpo e alma ao céu, e sua coroação pelas três pessoas da Santíssima Trindade. Pode-se recitar também uma coroa de seis ou sete dezenas em honra dos anos que se crê a Santíssima Virgem ter vivido na terra; ou a coroinha da Santíssima Virgem, composta de três Pai-nossos e doze Ave-Marias, em honra de sua coroa de doze estrelas ou privilégios; outrossim o ofício da Santíssima Virgem universalmente conhecido e recitado pela Igreja; o pequeno saltério da Santíssima Virgem que São Boaventura compôs em sua honra, tão terno e devoto que não se pode recitá-lo sem enternecimento; quatorze Pai-nossos e Ave-Marias em honra de suas quatorze alegrias; quaisquer outras orações, enfim, hinos e cânticos da Igreja, como o “Salve Rainha”, o “Alma”, o Ave Regina caelorum”, ou o “Regina caeli”, conforme os diferentes tempos; ou o “Ave, Maris Stella”, “O gloriosa Domina”, etc., ou o “Magnificat”, e outras orações e hinos de que andam cheios os devocionários; 7º cantar e fazer cantar em sua honra cânticos espirituais; 8º fazer-lhe um certo numero de genuflexões ou reverências, dizendo-lhe, p. ex., todas as manhãs, sessenta ou cem vezes: “Ave, Maria, Virgo Fidelis”, para, por meio dela, obter de Deus a fidelidade às graças durante o dia; e à noite: “Ave, Maria, Mater Misericordiae”, para, por intermédio dela, alcançar de Deus o perdão dos pecados cometidos durante o dia; 9º ter zelo por suas confrarias, ornar seus altares, coroar e enfeitar suas imagens; 10º carregar nas procissões ou fazer que se conduza sua imagem nas procissões, e trazê-la consigo como uma arma eficaz contra o demônio; 11º mandar fazer imagens que a representem, ou seu nome, e colocá-los nas igrejas, nas casas, nos pórticos ou à entrada das cidades, igrejas e casas; 12º consagrar-se a ela, de uma maneira especial e solene.
117. Há uma quantidade de outras práticas da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, que o Espírito Santo tem inspirado às almas de escol, e que são muito santificantes. Pode-se encontrá-las mais extensamente no livro “Paraíso aberto a Filágia”do Padre Paulo Barry, da Companhia de Jesus. Aí o autor coligiu grande número de devoções praticadas pelos santos em honra da Santíssima Virgem, devoções maravilhosamente úteis para santificar as almas, desde que sejam praticadas como devem, isto é:
1º Com reta e boa intenção de agradar só a Deus, de unir-se a Jesus Cristo como o nosso fim último, e de edificar o próximo; 2ª com atenção, sem distrações voluntárias; 3º com devoção, sem precipitação nem negligência; 4º com modéstia e compostura, em atitude respeitosa e edificante.
§ II. A prática perfeita.
118. Depois de ler quase todos os livros que tratam da devoção à Santíssima Virgem e de conversar com as pessoas mais santas e instruídas destes últimos tempos, declaro firmemente que não encontrei nem aprendi outra prática de devoção à Santíssima Virgem semelhante a esta que vou iniciar, que exija de uma alma mais sacrifícios a Deus, que a despoje mais completamente de seu amor-próprio, que a conserve com mais fidelidade na graça e a graça nela, que a una com mais perfeição e facilidade a Jesus Cristo, e, afinal, que seja mais gloriosa para Deus, santificante para a alma e útil ao próximo.
119. O essencial desta devoção consiste no interior que ela deve formar, e, por este motivo, não será compreendida igualmente por todo o mundo. Alguns hão de deter-se no que ela tem de exterior, e não passarão avante, e estes serão o maior número; outros, em número reduzido, entrarão em seu interior, mas subirão apenas um degrau. Quem alcançará o segundo? Quem se elevará ao terceiro? Quem, finalmente, se identificará nesta devoção? Aquele somente a quem o Espírito de Jesus Cristo revelar este segredo. Ele mesmo conduzirá a esse estado a alma fiel, fazendo-a progredir de virtude em virtude, de graça em graça e de luz em luz, para que ela chegue a transformar-se em Jesus Cristo, e atinja a plenitude de sua idade sobre a terra e de sua glória no céu.

5 de janeiro de 2015

História Eclesiástica - Primeira Época Capítulo 11

CAPÍTULO XI

Legião fulminante - São Fotino - Heresia de Marcos e a confissão dos pecados.

Legião fulminante - A São Aniceto sucedeu São Sotero que se distinguiu muito pelos benefícios que fez aos romanos e a todos os fiéis da cristandade. Durante seu pontificado, fez Deus um milagre que foi causa de que o imperador Marco Aurélio olhasse com melhores vistas aos cristãos. Achava-se este príncipe em guerra com uns povos bárbaros, quando estes o cercaram entre as áridas montanhas da Boêmia; seu exército estava rodeado de todas as partes e a falta de água punha seus soldados em iminente perigo de morrer de sede. Afortunadamente achavam-se naquele exército muito cristãos, que sabendo que o Evangelho diz, que se deve recorrer a Deus em todas as necessidades da vida, puseram-se a rezar na presença do inimigo. Este, vendo-os como em um estado de imobilidade enquanto rezavam, pensou que chegara o momento oportuno para atacar; porém no mesmo instante cobriu-se o Céu de nuvens e caiu uma chuva abundantíssima ali onde estavam os romanos, ao mesmo tempo que uma espantosa chuva de pedras acompanhada de freqüentes raios caiu sobre os bárbaros e os dispersou deixando um grande números de mortos e a vitória aos romanos. Estes já estavam a ponto de render-se pela grande sede que sofriam; mas sentindo chover, levantaram seus olhos para o céu afim de dar graças a Deus, e conjuntamente com a água receberam novas forças e valor. Narram este acontecimento todos os escritores cristãos e gentios daquele tempo. (V Capitolino, Decio, Tertuliano). O imperador reconheceu que este favor foi devido às orações dos cristãos, e para conservar sua memória fez esculpir o fato em baixo relevo em uma coluna de mármore que se levantou em Roma, e que ainda existe e se conhece com o nome de Coluna Antonina.
Também escreveu uma carta ao senado, participando-lhe o acontecimento e proibiu ao mesmo tempo que se perseguissem os cristãos; porém depressa esqueceu o imperador o favor que recebera.
São Fotino - Alguns anos mais tarde se atiçou novamente a perseguição, e muitos cristãos receberam a coroa do martírio. Entre estes distingue-se São Fotino, Bispo de Lion. Este fora enviado pelo Papa às Galias juntamente com outros eclesiásticos, para pregar o Evangelho. Havia já quarenta anos que ocupava aquela sede, quando seus zelo e os progressos que fazia a palavra de Deus, atraiam para ele a inveja e o ódio dos idólatras. Ainda que enfermo e sem forças arrastaram-no ao tribunal do prefeito e depois de ter sustentado com heróica firmeza um penoso interrogatório, conseguiu a palma do martírio aos 90 anos de idade.
Heresia de Marcos e a confissão dos pecados - Entre os mais famosos sectários de Valentim, já citados mais atrás, distingue-se o herege Marcos, homem muito astuto e prático na arte de enganar. Jatava-se de possuir o poder de Deus, e também ao de conceder aos outros o poder de fazer milagres, e conhecer o futuro. Levando uma vida devota em aparência, ganhou a estima de muitos que se deixaram arrastar a cometer os maiores excessos de impiedade e libertinagem. Alguns dos enganados tendo mais tarde conhecido o mal em que haviam caído, renunciaram a Marcos e voltaram para a Igreja Católica. "Marcos, disse São Irineu, adotou certas artes para acender as paixões e fascinar... algumas mulheres, que voltando mais tarde para Igreja de Deus o confessaram..., de modo que, certa pessoa da Ásia também caiu nesta desgraça... porque sua mulher... tendo sido pervertida por este mágico... depois tendo se convertido, não cessou de confessar entre lágrimas e gemidos durante o resto de sua vida, o pecado cometido". (Santo Irineu, lib. 1, c. 13). Este é um dos fatos da Igreja primitiva, que nos dá a conhecer como já existia então a prática da confissão sacramental e a crença de que esta tinha sido instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo, em virtude da capacidade que tinha dado aos Apóstolos de perdoar os pecados. (São João, 20). Dão-nos outra prova desta santa prática as multidões de fiéis que, a contar do tempo dos Apóstolos, iam desde Éfeso ajoelhar-se aos pés dos sagrados ministros, confessando e declarando seus feitos. (Atos dos Apóstolos, 19).

4 de janeiro de 2015

Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem - Parte 9

Capítulo III

Escolha da verdadeira devoção à Santíssima Virgem

90. Conhecidas estas cinco verdades, é preciso, mais do que nunca, fazer agora uma boa escolha da verdadeira devoção à Virgem Santíssima, pois, como jamais, pululam falsas devoções a Maria Santíssima, as quais passam facilmente por devoções verdadeiras. O demônio, como um moedeiro falso e um enganador fino e experimentado, tem já enganado e perdido inúmeras almas, inculcando uma falsa devoção à Santíssima Virgem, e todos os dias vale-se de sua experiência diabólica para lançar outros mais à eterna condenação, divertindo-as e acalentando-as no pecado, sob o pretexto de algumas orações mal recitadas e de algumas práticas exteriores que lhes inspira. Como um moedeiro falso só falsifica ordinariamente moedas de ouro e prata, raras vezes imitando outros metais, que não compensam o trabalho, do mesmo modo o espírito maligno não se detém em falsificar outras devoções que não sejam as de Jesus e de Maria, à santa comunhão, e à Virgem Santíssima, porque são estas como ouro e a preta entre os metais.

91. É, portanto, de grande importância conhecer primeiramente as falsas devoções à Santíssima Virgem, para evitá-las, e a verdadeira, para abraçá-la; segundo, entre tantas práticas diferentes da verdadeira devoção à Virgem Santíssima, distinguir a mais perfeita, a mais agradável a Maria Santíssima, a que mais glória dá a Deus, a mais santificante para nós, para a esta nos apegarmos.
Artigo I
Os sinais da falsa e da verdadeira devoção à Santíssima Virgem
§ I. Os falsos devotos e as falsas devoções à Santíssima Virgem.

92. Conheço sete espécies de falsos devotos e falsas devoções à Santíssima Virgem: 1º os devotos críticos, 2º os devotos escrupulosos, 3º os devotos exteriores, 4º os devotos presunçosos, 5º os devotos inconstantes, 6º os devotos hipócritas, 7º os devotos interesseiros.
1º Os devotos críticos

93. Os devotos críticos são, em geral, sábios orgulhosos, espíritos fortes e presumidos, que têm no fundo uma certa devoção à Santíssima Virgem, mas que vivem criticando as práticas de devoção que a gente simples tributa de boa-fé e santamente a esta boa Mãe, pelo fato de estas devoções não agradarem à sua culta fantasia. Põem em dúvida todos os milagres e histórias narrados por autores dignos de fé, ou inseridos em crônicas de ordens religiosas, atestando as misericórdias e o poder da Santíssima Virgem. Repugna-lhes ver pessoas simples e humildes ajoelhadas diante de um altar ou de uma imagem da Virgem, às vezes no recanto de uma rua, rezando a Deus; chegam a acusá-las de idolatria, como se estivesse adorando a pedra ou a madeira. Dizem que, de sua parte, não apreciam essas devoções exteriores e que seu espírito não é tão fraco que vá dar fé a tantos contos e historietas que se atribuem à Santíssima Virgem. Quando alguém lhes repete os louvores admiráveis que os Santos Padres dão à Santíssima Virgem, respondem que são flores de retórica, ou exagero, que aqueles escritores eram oradores; ou dão, então, uma explicação má daquelas palavras.41
41) Não se pense que S. Luís Maria exagere neste ponto. A época em que escrevia era a desses devotos críticos, que procuravam propagar entre os fiéis escritos venenosos, como o panfleto de Windenfelt, intitulado: “Avisos salutares da B. V. Maria a seus devotos indiscretos” (V. Lhomeau: “Vida espiritual”).
Esta espécie de falsos devotos e orgulhosos e mundanos é muito para temer e eles causam um mal infinito à devoção à Santíssima Virgem, dela afastando eficazmente o povo, sob pretexto de destruir-lhes os abusos.
2º Os devotos escrupulosos

94. Os devotos escrupulosos são aqueles que receiam desonrar o Filho, honrando a Mãe, e rebaixá-lo se a exaltarem demais. Não podem suportar que se repitam à Santíssima Virgem aqueles louvores justíssimos que lhe teceram os Santos Padres; não suportam sem desgosto que a multidão ajoelhada aos pés de Maria seja maior que ante o altar do Santíssimo Sacramento, como se fossem antagônicos, e como se os que rezam à Santíssima Virgem não rezassem a Jesus Cristo por meio dela. Não querem que se fale tão freqüentemente da Santíssima Virgem, nem que se recorra tantas vezes a ela.
Algumas frases eles as repetem a cada momento: Para que tantos terços, tantas confrarias e devoções exteriores à Santíssima Virgem? Vai nisso muito de ignorância! É fazer da religião uma palhaçada. Falai-me, sim, dos que são devotos de Jesus Cristo (e eles o nomeiam, muitas vezes, sem se descobrir, digo-o sem parêntesis): cumpre recorrer a Jesus Cristo, pois é ele o nosso único medianeiro; é preciso pregar Jesus Cristo, isto sim que é sólido!
Em certo sentido é verdade o que eles dizem. Mas, pela aplicação que lhe dão, é bem perigoso e constitui uma cilada sutil do maligno, sob o pretexto de um bem muito maior, pois nunca se há de honrar mais a Jesus Cristo, do que honrando a Santíssima Virgem, desde que a honra que se presta a Maria não tem outro fim que honrar mais perfeitamente a Jesus Cristo, e que só se vai a ela como ao caminho para atingir o termo que é Jesus Cristo.

95. A santa Igreja, como o Espírito Santo, bendiz primeiro a Santíssima Virgem e depois Jesus Cristo: “benedicta tu in mulieribus et benedictus fructus ventris tui Iesus”. Não porque a Santíssima Virgem seja mais ou igual a Jesus Cristo: seria uma heresia intolerável, mas porque, para mais perfeitamente bendizer Jesus Cristo, cumpre bendizer antes a Maria. digamos, portanto, com todos os verdadeiros devotos de Maria, contra seus falsos e escrupulosos devotos: Ó Maria, bendita sois vós entre todas as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus!
3º Os devotos exteriores

96. Devotos exteriores são as pessoas que fazem consistir toda a devoção à Santíssima Virgem em práticas exteriores; que só tomam interesse pela exterioridade da devoção à
Santíssima Virgem, por não terem espírito interior; que recitarão às pressas uma enfiada de terços, ouvirão, sem atenção, uma infinidade de missas, acompanharão as procissões sem devoção, farão parte de todas as confrarias sem emendar de vida, sem violentar suas paixões, sem imitar as virtudes desta Virgem Santíssima. Amam apenas o que há de sensível na devoção, sem interesse pela parte sólida. Se suas práticas não lhes afetam a sensibilidade, acham que não há nada mais a fazer, ficam desorientados, ou fazem tudo desordenadamente. O mundo está cheio dessa espécie de devotos exteriores e não há gente que mais critique as pessoas de oração que se dedicam à devoção interior sem desprezar o exterior de modéstia, que acompanha sempre a verdadeira devoção.
4º Os devotos presunçosos

97. Os devotos presunçosos são pecadores abandonados a suas paixões, ou amantes do mundo, que, sob o belo nome de cristãos e devotos da Santíssima Virgem, escondem ou o orgulho, ou a avareza, ou a impureza, ou a embriaguez, ou a cólera, ou a blasfêmia, ou a maledicência, ou a injustiça, etc.; que dormem placidamente em seus maus hábitos, sem violentar-se muito para se corrigir, alegando que são devotos da Virgem; que prometem a si mesmos que Deus lhes perdoará, que não hão de morrer sem confissão, e não serão condenados porque recitam seu terço, jejuam aos sábados, pertencem à confraria do santo Rosário ou do Escapulário, ou a alguma congregação; porque trazem consigo o pequeno hábito ou a cadeiazinha da Santíssima Virgem, etc.
Quando alguém lhes diz que sua devoção não é mais do que ilusão e uma presunção perniciosa capaz de perdê-los, recusam-se a crer; dizem que Deus é bom e misericordioso e que não nos criou para nos condenar; que não há homem que não peque; que eles não hão de morrer sem confissão; que um bom peccavi à hora da morte basta; de mais a mais que eles são devotos da Santíssima Virgem, cujo escapulário usam; e em cuja honra dizem, todos os dias, irrepreensivelmente e sem vaidade (isto é, com fidelidade e humildade) sete Pai-nossos e sete Ave-Marias; que recitam mesmo, uma vez ou outra, o terço e o ofício da Santíssima Virgem; que jejuam, etc. Para confirmar o que dizem e mais aumentar a própria cegueira, relembram umas histórias que leram ou ouviram, verdadeiras ou falsas não importa, em que se afirma que pessoas mortas em pecado mortal, sem confissão, só pelo fato de que em vida tinham feito algumas orações ou práticas de devoção à Santíssima Virgem ressuscitaram para se confessar, ou sua alma permaneceu milagrosamente no corpo até se confessarem, ou, ainda, que, pela misericórdia da Santíssima Virgem, obtiveram de Deus, na hora da morte, a contrição e o perdão de seus pecados, e se salvaram. Eles esperam, portanto, a mesma coisa.

98. Não há, no cristianismo, coisa tão condenável como essa presunção diabólica; pois será possível dizer de verdade que se ama e honra a Santíssima Virgem, quando, pelos pecados, se fere, se traspassa, se crucifica e ultraja impiedosamente a Jesus Cristo, seu Filho? Se Maria considerasse uma lei salvar essa espécie de gente, ela autorizaria um crime, ajudaria a crucificar e injuriar seu próprio Filho. Que o ousaria pensar?

99. Digo que abusar assim da devoção à Santíssima Virgem, a mais santa e mais sólida devoção a Nosso Senhor e ao Santíssimo Sacramento, é cometer um horrível sacrilégio, o maior e o menos perdoável, depois do sacrilégio de uma comunhão indigna.
Confesso que, para ser alguém verdadeiramente devoto da Santíssima Virgem, não é absolutamente necessário ser santo ao ponto de evitar todo pecado, conquanto seja este o ideal; mas é preciso ao menos (note-se bem o que vou dizer):
Em primeiro lugar, estar com a resolução sincera de evitar ao menos todo pecado mortal, que ofende tanto a Mãe como o Filho.
Segundo, fazer violência a si mesmo para evitar o pecado.
Terceiro, filiar-se a confrarias, rezar o terço, o santo rosário ou outras orações, jejuar aos sábados, etc.

100. Isto é maravilhosamente útil à conversão de um pecador, mesmo empedernido; e se meu leitor estiver nestas condições, como que tenha já um pé no abismo, eu lho aconselho, contanto, porém, que só pratique estas boas obras na intenção de, pela intercessão da Santíssima Virgem, obter de Deus a graça da contrição e do perdão dos pecados, e de vencer seus maus hábitos, e não para continuar calmamente no estado de pecado, a despeito dos remorsos de consciência, do exemplo de Jesus Cristo e dos santos, e das máximas do santo Evangelho.
5º Os devotos inconstantes

101. Devotos inconstantes são aqueles que são devotos da Santíssima Virgem periodicamente, por intervalos e por capricho: hoje são fervorosos, amanhã tíbios; agora mostram-se prontos a tudo empreender em serviço de Maria e logo após já não parecem os mesmos. Abraçam logo todas as devoções à Santíssima Virgem, ingressam em todas as suas confrarias, e em pouco tempo já nem observam as regras com fidelidade; mudam como a lua42, e Maria os esmaga sob seus pés como faz ao crescente, pois eles são volúveis e indignos de ser contados entre os servidores deste Virgem fiel, que têm a fidelidade e a constância por herança. Vale mais não se sobrecarregar de tantas orações e práticas de devoção, e fazer poucas com amor e fidelidade, a despeito do mundo, do demônio e da carne.
42) A lua, por suas variações, é tomada freqüentemente pelos antigos autores místicos como o símbolo das mudanças da alma inconstante. – Cf. Ecli 27, 27, 12. São Bernardo: “Sermo super Signum Magnum”, n.3.
6º Os devotos hipócritas

102. Há também falsos devotos da Santíssima Virgem, os devotos hipócritas, que cobrem seus pecados e maus hábitos com o manto desta Virgem fiel, a fim de passarem aos olhos do mundo por aquilo que não são.
7º Os devotos interesseiros

103. Há ainda os devotos interesseiros, que só recorrem à Santíssima Virgem para ganhar algum processo, para evitar algum perigo, para se curar de alguma doença ou em qualquer necessidade desse gênero, sem o que a esqueceriam; uns e outros são falsos devotos que não têm aceitação diante de Deus e de sua Mãe Santíssima.

* * *

104. Cuidemos, portanto, de não pertencer ao número dos devotos críticos que em coisa alguma crêem e de tudo criticam; dos devotos escrupulosos que receiam ser demasiadamente devotos da Santíssima Virgem, por respeito a Jesus Cristo; dos devotos exteriores que fazem consistir toda a sua devoção em práticas exteriores; dos devotos presunçosos, que, sob o pretexto de sua falsa devoção continuam marasmados em seus pecados; dos devotos inconstantes que, por leviandade, variam suas práticas de devoção, ou as abandonam completamente à menor tentação; dos devotos hipócritas que se metem em confrarias e ostentam as insígnias da Santíssima Virgem a fim de passar por bons; e, enfim, dos devotos interesseiros, que só recorrem à Santíssima Virgem para se livrarem dos males do corpo ou obter bens temporais.
§ II. A verdadeira devoção à Santíssima Virgem.

105. Depois de descobrir e condenar as falsas devoções à Santíssima Virgem, cumpre estabelecer em poucas palavras a devoção verdadeira, que é: 1º interior, 2º terna, 3º santa, 4º constante, 5º desinteressada.
1º A verdadeira devoção é interior

106. Antes de tudo, a verdadeira devoção à Santíssima Virgem é interior, isto é, parte do espírito e do coração. Vem da estima em que se tem a Santíssima Virgem. Da alta idéia que se formou de suas grandezas, e do amor que se lhe consagra.
2º A verdadeira devoção é terna

107. Em segundo lugar é terna, quer dizer cheia de confiança na Santíssima Virgem, da confiança de um filho em sua mãe. Impele uma alma a recorrer a ela em todas as necessidades do corpo e do espírito, com extremos de simplicidade, de confiança e de ternura; ela implora o auxílio de sua boa Mãe em todo o tempo, em todo lugar, em todas as coisas: em suas dúvidas, para ser esclarecida; em seus erros, para se corrigir; nas tentações, para ser sustentada; em suas fraquezas, para ser fortificada; em suas quedas, para ser levantada; em seus abatimentos, para ser encorajada; em seus escrúpulos, para ficar livre deles; em suas cruzes, trabalhos e reveses da vida, para ser consolada. Em todos os males do corpo e do espírito, enfim, Maria é o refúgio, e não há receio de importunar esta boa Mãe e desagradar a Jesus Cristo.
3º A verdadeira devoção é santa

108. Terceiro, a verdadeira devoção à Santíssima Virgem é santa: leva uma alma a evitar o pecado e a imitar as virtudes da Santíssima Virgem, principalmente sua humildade profunda, sua contínua oração, sua obediência cega, sua fé viva, sua mortificação universal, sua pureza divina, sua caridade ardente, sua paciência heróica, sua doçura Angélica e sua sabedoria divina. Aí estão as dez principais da Santíssima Virgem.
4º A verdadeira devoção é constante

109. Quarto, verdadeira devoção à Santíssima Virgem é constante, firma uma alma no bem, e ajuda-a a perseverar em suas práticas de devoção. Torna-a corajosa para se opor ao mundo em suas modas e máximas, à carne, em seus aborrecimentos e paixões, e ao demônio, em suas tentações. Assim, uma pessoa verdadeiramente devota da Santíssima Virgem não é volúvel, nem se deixa dominar pela melancolia, pelos escrúpulos ou pelos receios. Não quer isto dizer que não caia ou não mude, às vezes, na sensibilidade de sua devoção; mas, se cai, levanta-se logo, estende a mão à sua boa Mãe, e, se perde o gosto ou a devoção sensível, não se aflige irremediavelmente, pois o justo e devoto fiel de Maria vive da fé de Jesus e de Maria, e não nos sentimentos naturais.
5º A verdadeira devoção é desinteressada

110. A verdadeira devoção à Santíssima Virgem é, finalmente, desinteressada, leva a alma a buscar não a si mesma, mas somente a Deus em sua Mãe Santíssima. O verdadeiro devoto de Maria não serve a esta augusta Rainha por espírito de lucro e de interesse, nem para seu bem temporal ou eterno, corporal ou espiritual, mas unicamente porque ela merece ser servida, e Deus exclusivamente nela; o verdadeiro devoto não ama a Maria precisamente porque ela lhe faz ou ele espera dela algum bem, mas porque ela é amável. Só por isto ele a ama e serve nos desgostos e na aridez, como nas doçuras e no fervor sensível, sempre com a mesma fidelidade; ama-a nas amarguras do Calvário como nas alegrias de Caná. Oh! como é agradável e precioso aos olhos de Deus e de sua Mãe Santíssima, esse devoto, que em nada se busca nos serviços que presta à sua Rainha. Mas, também, quão raro é encontrá-lo agora. E é com o fito de que cresça o número desses fiéis devotos, que empunhei a pena para escrever o que tenho, com particular fruto, ensinado em público e em particular nas minha missões, durante anos e anos.

* * *

111. Muitas coisas já disse sobre a Santíssima Virgem. Mais ainda tenho, entretanto, a dizer, e infinitamente mais omitirei, seja por ignorância, incapacidade ou falta de tempo, no desígnio que tenho de formar um verdadeiro devoto de Maria e um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo.

112. Oh! bem empregado seria o meu esforço, se este escrito, caindo nas mãos duma alma bem nascida, nascida de Deus e de Maria, e não do sangue, ou da vontade da carne, nem da vontade do homem (cf. Jo 1, 13), lhe desvendasse e inspirasse, pela graça do Espírito Santo, a excelência e o prêmio da verdadeira e sólida devoção à Santíssima Virgem, como vou indicar. Se eu soubesse que meu sangue pecaminoso poderia servir para fazer entrar no coração as verdades que escrevo em honra de minha querida Mãe e soberana Senhora, da qual sou o último dos filhos e escravos, em lugar de tinta eu o usaria para formar esses caracteres, na esperança que me anima de encontrar boas almas que, por sua fidelidade à prática que ensino, compensarão minha boa Mãe e Senhora das perdas que lhe têm causado minha ingratidão e infidelidade.

113. Sinto-me, mais do que nunca, animado a crer e esperar em tudo que tenho profundamente gravado no coração, e que há muitos anos peço a Deus: que mais cedo ou mais tarde a Santíssima Virgem terá mais filhos, servidores e escravos44, como nunca houve, e que, por este meio, Jesus Cristo, meu amado Mestre, reinará totalmente em todos os corações.
44) Note-se a associação destes dois termos: filho e escravo. A mesma aproximação foi feita pelo Catecismo do Concílio de Trento (p. I, cap. 3, “De secundo symboli articulo”, in fine).

114. Vejo, no futuro, animais frementes, que se precipitam furiosos para dilacerar com seus dentes diabólicos este pequeno manuscrito e aquele de quem o Espírito Santo se serviu para escrevê-lo, ou ao menos para fazê-lo ficar envolto nas trevas e no silêncio de uma arca, a fim de que ele não apareça. Atacarão até, e perseguirão aqueles e aquelas que o lerem e o puserem em prática.45 Mas não importa! tanto melhor! Esta visão me encoraja e me dá a esperança de um grande sucesso, isto é, um esquadrão de bravos e destemidos soldados de Jesus e de Maria, de ambos os sexos, para combater o mundo, o demônio e a natureza corrompida, nos tempos perigosos que virão, e como ainda não houve.
“Que legit, intelligat. Qui potest capere, capiat” (Mt 24, 15; 19, 12).
45) Esta predição realizou-se ao pé da letra. Em todo o decorrer do século XVIII, os filhos de Montfort fora o alvo dos ataques dos jansenistas, em vista de seu zelo por esta devoção. E o precioso manuscrito, escondido durante as perturbações da Revolução Francesa, só foi encontrado em 1842 por um padre da Companhia de Maria, em um caixote de livros antigos.

3 de janeiro de 2015

História Eclesiástica - Primeira Época Capítulo 10

CAPÍTULO X

Quarta perseguição - São Policarpo em Roma - Santa Felicidade e seus filhos - Heresia de Montano.

Quarta perseguição - Esta perseguição se atribui em grande parte às calúnias que se espalharam contra os cristãos. Cometeram-se nela tais violências que muitas vezes os próprios verdugos se horrorizavam da atrocidade dos tormentos com que os martirizavam, e com grande repugnância cumpriam o bárbaro ofício que se lhes confiava. Governava então a Igreja Pio I que, depois de ter empregado os nove anos do seu pontificado em combater as heresias, em animar os mártires e promover as necessidades da cristandade, fez-se credor da palma do martírio. Cortaram-lhe a cabeça no ano 167. Conta-se entre os mais célebres mártires desta perseguição um jovenzinho chamado Germânico que animava os outros com o seu exemplo. Antes de expô-lo às feras tentou o juiz seduzi-lo; porém o magnânimo menino disse que preferia antes perder mil vidas, que conservar uma à custa de sua inocência; e dirigindo-se para um leão que se arrojava contra ele, terminou sua vida na boca daquele furioso animal apressurando-se a sair deste mundo para chegar o quanto antes ao Céu.
São Policarpo em Roma - Chegando ao conhecimento de São Policarpo, discípulo de São João Evangelista e bispo de Smirna, a notícia do grande número de hereges que tinham ido à Roma, dirigiu-se ele também para esta cidade no pontificado de São Aniceto, sucessor de São Pio I com o fim de dissipar seus erros. Sua ida à Roma foi muito oportuna, porque tendo sido ele um dos que conversaram com os Apóstolos, gozava sobre todos de uma grande autoridade, e como disse Santo Irineu, muitos dos que se tinham deixado seduzir pelos erros de Valentim e de Marcião voltaram para a Igreja de Jesus Cristo, mediante a eficácia de sua palavra. Persuadido o herege Marcião de que alcançaria uma grande vitória podendo contar o santo bispo como um de seus sectários, tratou de ganha-lo; e com este fim se lhe apresentou um dia e lhe disse com audácia: "Cognoscis nos?" Conhece-me, sabes quem eu sou? "Sim, respondeu-lhe incontinente Policarpo, conheço-te muito bem, e sei quem és Marcião, primogênito de Satanás".
Um dos principais pontos a que se dirigia o zelo de Policarpo, era o de segregar os católicos dos hereges para que permanecesse pura a fé dos primeiros. Eusébio de Cesárea acrescenta que São Policarpo foi a Roma também para conferenciar com o Sumo Pontífice sobre algumas coisas concernentes ao bem da Igreja, conferências que terminaram com caridade de ambas as partes. Também foi à Cidade Eterna para determinar com o Papa, se devia se celebrar o dia da Páscoa no primeiro domingo, depois da lua cheia de março, como se tinha celebrado desde o tempo dos Apóstolos, ou antes do mesmo dia da lua de março, como se fazia em algumas Igrejas da Ásia. Aniceto, ainda que desejasse uniformidade em toda Igreja, julgou oportuno não desgostar aos bispos da Ásia, e tolerou que naqueles países se celebrasse a Páscoa no dito Plenilúnio. Essa tolerância tinha por fim contentar aos judeus recém-convertidos à fé. (Euseb. liv. 4.º). Aniceto deu prova de grande veneração à santidade e doutrina de São Policarpo, pois permitiu-lhe que celebrasse a Santa Missa vestido de pontifical e administrasse do mesmo modo a comunhão aos fiéis.
Durante sua estada em Roma, soube Policarpo que a perseguição tinha tornado a recrudescer em sua diocese; por isso apressou-se em voltar ao seu rebanho. Pouco tempo depois de ter chegado, foi preso pelos perseguidores e levado ao cárcere. Às palavras do juiz que o exortava a que renegasse Jesus Cristo e o amaldiçoasse, respondeu: "Há 86 que me consagrei a sue divino serviço e nunca recebi dele injúria alguma. Como queres tu que maldiga meu Rei e Salvador?" Depois de muitos sofrimentos foi condenado às chamas em que consumou seu heróico sacrifício.
Santa Felicidade e seus filhos - Santa Felicidade verdadeiro modelo das mães cristãs, pertencia a uma das principais famílias de Roma. Enviuvando resolveu dedicar-se unicamente à sua santificação e à seus filhos. Acusada como cristã foi conduzida perante o prefeito público, que lançou mão de toda sorte de indústrias para fazê-la prevaricar. "O Espírito de Deus, respondia a santa, me faz superior a todo engano e sedução, e enquanto viva não poderás vencer-me, porque se tu me tiras a vida, morrendo eu será muito mais gloriosa a minha vitória. No dia seguinte o prefeito fez conduzir Felicidade e seus filhos a seu tribunal, e disse à mãe: "Se a ti não importa a vida, compadece-te ao menos de teus filhos"; porém ela respondeu-lhe: "A compaixão que tu pedes seria atroz crueldade". Voltando-se logo a seus filhos e mostrando-lhes o céu, disse-lhes: "Vede lá em cima, lá vos espera Jesus Cristo com seus santos, que vos têm aberto o caminho. Mostrai-vos agradecidos a tão magnânimo remunerador, e combatei com um valor digno do prêmio que se vos promete". O prefeito a fez esbofetear, chamou em seguida seus sete filhos, que, depois de confessar Jesus Cristo com firmeza heróica, morreram um depois do outro em horríveis tormentos. A mãe assistiu com intrepidez a seu martírio, animando-os a perseverar na fé. Por último cortaram-lhe também a cabeça e misturou assim seu sangue com o de seus filhos na terra, para ir reunir-se com eles na glória do Céu. Pouco depois o Papa Aniceto também sofreu o martírio. Cortaram-lhe a cabeça no ano de 175.
Heresia de Montano - Montano começou a propagar sua heresia no pontificado de Santo Aniceto. Nascido na Frigia e educado na religião cristã foi tomado do espírito da vaidade, e desejou ardentemente ser Bispo; porém como se lhe negasse esta dignidade por sua má conduta, rebelou-se contra a Igreja e começou a pregar mil torpezas. Suas extravagâncias chegaram a tal ponto que se vendeu ao demônio, o qual o possuía realmente. Acompanhava-o duas mulheres dissolutas e endemoniadas como ele; uma se chamava Prisca e outra Maximila. Convocou-se na Ásia uma reunião de Bispos e Sacerdotes que depois de um maduro exame, condenou como herege Montano e seus sectários. Então o astuto Montano dirigiu-se a Roma com suas falsas profetizas e conseguiu seduzir vários cristãos incautos; foi tão audaz que se apresentou ao próprio Aniceto para se fazer agregar ao Clero Romano. Conhecendo o Pontífice a sua hipocrisia, excomungou-o como já o tinham feito os Bispos da Ásia. Depois disto Montano e suas profetizas, cedendo ao espírito maligno, se estrangularam por suas próprias mãos.

2 de janeiro de 2015

Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem - Parte 8

Artigo V

É muito difícil para nós conservar as graças e tesouros recebidos de Deus

87. Quinta verdade. – É extremamente difícil, devido à nossa fraqueza e fragilidade, conservarmos em nós as graças e os tesouros que recebemos de Deus:
1º Porque este tesouro, mais valioso que o céu e a terra, nós os guardamos em vasos frágeis: “Habemus thesaurum istum in vasis fictilibus” (2Cor 4, 7); em um corpo corruptível, em uma alma fraca e inconstante que um nada perturba e abate.
88. 2º porque os demônios, que são ladrões finórios, buscam surpreender-nos de improviso para nos roubar e despojar; espreitam dia e noite o momento favorável a seu desígnio; andam incessantemente ao redor de nós, prontos a devorar-nos (cf 1Ped 5, 8) e, pelo pecado, arrebatar-nos, num momento, tudo que em longos anos conseguimos alcançar de graças e méritos. E tanto mais devemos temer esta desgraça, sabendo quão incomparável é sua malícia, sua experiência, suas astúcias e seu número. Pessoas tem havido muito mais cheias de graças do que nós, mais ricas em virtudes, mais experientes, mais elevadas em santidade, que foram surpreendidas, roubadas, saqueadas lamentavelmente. Ah! quantos
cedros do Líbano, quantas estrelas do firmamento se têm visto cair miseravelmente, perdendo em pouco tempo toda a sua altivez e claridade. A que atribuir tão estranha mudança? Não foi falta de graça, pois a graça não falta a ninguém; foi falta de humildade. Essas pessoas acreditavam-se mais fortes e suficientes do que o eram na realidade; julgavam-se capazes de guardar seus tesouros; fiaram-se e apoiaram-se em si próprias; creram sua casa bastante segura e bem fortes os seus cofres para guardar o precioso tesouro da graça, e, devido a essa segurança imperceptível que tinham em si (conquanto lhes parecesse que se apoiavam na graça de Deus), é que o justíssimo Senhor, abandonando-as às próprias forças, permitiu que fossem roubadas. Ah! se tivessem conhecido a devoção admirável que vou expor, em seguida, teriam confiado seu tesouro à Virgem poderosa e fiel, que o teria guardado como seu próprio bem, fazendo mesmo, disso, um dever de justiça.
89. 3º É difícil perseverar na justiça, por causa da corrupção do mundo. O mundo está, atualmente, tão corrompido, que é quase necessário que os corações religiosos sejam manchados, se não pela lama, ao menos pela poeira dessa corrupção; de modo que se pode considerar um milagre o fato de uma pessoa manter-se firme no meio dessa torrente impetuosa sem que o turbilhão a arraste; no meio desse mar tempestuoso sem que o furor das ondas a submerja ou a pilhem os piratas e corsários no meio desse ar empestado sem que os miasmas a contaminem. É a Virgem, a única fiel, na qual a serpente não teve parte jamais, que faz este milagre em favor daqueles e daquelas que a servem da mais bela maneira.

1 de janeiro de 2015

História Eclesiástica - Primeira Época Capítulo 9

CAPÍTULO IX

Santo Alexandre 1º em presença de Aureliano - Interrogatório de Santo Alexandre - Martírio de Santo Alexandre e seus companheiros.

Santo Alexandre 1º em presença de Aureliano - A Santo Anacleto sucedeu o Papa São Evaristo, natural de Belém, que ocupou o trono pontifício cerca de nove anos, sendo martirizado no ano de 121. A este sucedeu Santo Alexandre que, ainda muito jovem, pregava com tal eficácia que chegou a converter o prefeito de Roma, chamado Hermetes, sua família e 1250 criados seus. Chegada a notícia aos ouvidos do imperador, este irritou-se muitíssimo com ele, e desde a cidade de Selêucia, onde se achava então, mandou a Roma o conde Aureliano para que condenasse à morte todos os cristãos que descobrisse. Os primeiros encarcerados foram o prefeito e o Pontífice.
Fizeram-lhes minuciosíssimos, longos e violentos interrogatórios; experimentou-se o cárcere, a fome, a sede, o ferro e o fogo, porém em vão; antes a pregação e os milagres que em todas as partes fazia o santo Pontífice contribuíam para trazer novas almas à fé.

Interrogatório de Santo Alexandre - "Eu quisera, lhe disse Aureliano, que me fizesses conhecer os mistérios de tua religião, e o prêmio pelo qual deixas tirar a vida com tanta indiferença.
Alexandre respondeu: "O que queres saber é coisa santa, e Jesus nos proíbe falar das verdades da fé aos que desejam saber não para acreditar nelas, porém para escarnecê-las.
Não é conveniente, dizia o Salvador, dar as coisas santas aos cães e atirar as pedras preciosas aos porcos."
- Como sou eu um cão? Replicou Aureliano encolerizado.
- Tua sorte é inferior à dos brutos, respondeu Alexandre; pois estes, sendo irracionais, não podem venerar as verdades da fé que eles não conhecem, ao passo que o homem, feito à imagem e semelhança de Deus, se recusa conhecê-las ou as despreza, ofende ao Criador, e pagará sua culpa não só com as penas desta vida, mas também com as chamas eternas do inferno.
- Responde ao que te pergunto: se assim não o fizeres condeno-te aos tormentos.
- Aquele que quer instruir-se na Religião de Jesus cristo deve fazê-lo com humildade e não com ameaças.
- Responde ao que te pergunto, e lembra-te que te achas em presença de um Juiz cujo poder é temido em todo o mundo.
- Aquele que se jacta de seu poder, está perto de perdê-lo. 
- Infeliz! Tuas palavras e tua audácia serão castigadas com atrozes tormentos.
- Nada fazes de novo fazendo-me atormentar. Porque, qual homem inocente que pode sair com vida de tuas mãos? Junto de ti, unicamente vivem tranqüilos os que renegam a Nosso Senhor Jesus Cristo; eu que espero morrer e padecer por Ele, certamente serei atormentado e morto, como o foram o glorioso Hermete e o intrépido Quirino, e todos aqueles que passaram com valor por meio de tormentos para chegar por eles à vida eterna.
- Qual a razão que te impele à extravagância de deixar-te matar antes que obedecer às minhas ordens?
- Já to disse e repito: não é lícito dar aos cães as coisas santas.
- Voltas a me chamar de cão? Basta já de palavras; passemos aos tormentos.
- Não temo os tormentos que passam, porém sim aqueles que tu não temes, isto é, os tormentos do inferno que não se acabarão jamais.
Compreendeu então Aureliano que falava inutilmente; por isso ordenou que despissem Alexandre e que o estendessem sobre o ecúleo (instrumento de tortura). Açoitaram-no com varas e o dilaceraram com unhas de ferro.
Enquanto suas carnes caiam em pedaços, punham tochas acesas debaixo de suas chagas; pareciam no entanto que aqueles agudos e penosos sofrimentos não serviam senão para aumentar as ânsias que o santo Pontífice tinha de padecer.
- Porque não te queixas? Perguntou-lhe admirado Aureliano. Qual a razão do teu silêncio?
- Quando o cristão reza, fala com Deus, e quando pensa n'Ele esquece tudo que aqui em baixo se padece.
- Responde a tudo que te pergunto e farei suspender teus tormentos.
- Estulto! Faze o que queres; não temo tua crueldade.
- Considera ao menos tua idade, ainda não tem 30 anos, e já queres privar-te da vida?
- Tem antes mais compaixão de tua alma; pois se eu perco o corpo, salvo a alma, porém se tu perdes a alma, com ela tudo perderás par sempre.
Martírio de Santo Alexandre e seus companheiros - Depois de ameaças, interrogatórios e tormentos inúteis, Aureliano ordenou se acendesse uma fogueira.
Quando as chamas chagaram à sua maior intensidade, mandou que atassem juntos Alexandre e Evêncio, e os atirassem nas chamas. Quis também o imperador que um sacerdote chamado Teódulo se achasse presente ao suplício de seus companheiros para atemorizá-lo. Alexandre vendo-o triste, gritou em alta voz: "irmão Teódulo, vem aqui tu também, porque o quarto companheiro, isto é, aquele anjo que apareceu aos três meninos judeus no forno da Babilônia, se acha também conosco." Então Teódulo se atirou à fogueira. Deus operou então o mesmo milagre que fizera no tempo de Nabucodonosor, pois o fogo perdeu seu poder e não fez dano algum àqueles campeões de fé. Eles vendo-se tão prodigiosamente defendidos, puseram-se a cantar: "Ó Senhor, tu nos hás provado com fogo, e tendo-nos purificado de nossos pecados com tua misericórdia, já não encontraste em nós nenhuma iniqüidade".
Furiosamente encolerizado, Aureliano ordenou que tirassem da fogueira Evêncio e Teódulo e que se lhes cortasse logo a cabeça e a Alexandre fez introduzir tantas pontas de ferro no corpo que em pouco tempo exalou o último suspiro. Este martírio teve lugar a 3 de maio de 132.