8 de março de 2017

Dom Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

IV 

O Coração de Jesus Cristo deixou-se principalmente atrair por uma das formas mais profundas da miséria humana, qual é o pecado. Se no procedimento do Verbo Incarnado, durante a Sua vida pública, há traço que impressione de modo particular, esse é a singular preferência que manifesta pelo Seu ministério junto dos pecadores.
 Os escritores sagrados dizem-nos que 'grande nu­mero de publicanos e pecadores se sentavam à mesa com Jesus e seus discípulos': Ecce MULTI publicani et peccatores venientes discumbebant cum Jesu et discipulis ejus. Este procedimento era tão habitual n'Ele, que costumavam chamá-Lo o amigo dos publicanos e dos pecadores: Publicanorum et peccatorum amicus. E, quando os fariseus se mostravam escandalizados com isso, longe de negar o fato, Jesus confirmava-o, dando a razão profunda dele: Não são os que têm saúde, mas sim os doentes, que precisam de médico ... Não vim chamar os justos, mas sim os pecadore.
 No plano eterno, Jesus é o nosso irmão mais velho: Praedestinavit (nos Deus) conformes fieri imaginis Filií sui, ut sit ipse primogenítus in multis fratribus. Tomou a nossa natureza, pecadora na raça, mas pura na Sua pessoa: In similitudinem carnis peccati. Sabe que a grande massa dos homens sucumbe ao pecado e necessita de perdão; que as almas escravas do pecado, que vivem longe de Deus, nas trevas e à sombra da morte, não compreenderão a revelação direta do divino; não poderão ser atraídas para o Pai senão pelas condescendências da santa Humanidade. E é por isso que uma grande parte dos Seus ensinamentos e da Sua doutrina, uma infinidade de atos de bondade e perdão para com os pecadores, têm por fim fazer compreender a essas pobres almas algo da profundeza das misericórdias divinas.
 Numa das Suas mais belas parábolas, que conheceis, a do filho pródigo, Jesus mostra-nos o retrato autêntico do Pai celeste.
 Mas, como muito claramente o dá a entender o Evangelho, o fim imediato é explicar as Suas próprias condescendências para com os pecadores. De fato, diz S. Lucas que 'os fariseus murmuravam, porque todos os publicanos e pecadores se aproximavam de Jesus para O ouvir: Este homem recebe os pecadores e come com ele'. «E então Jesus», para justificar o Seu modo de proceder, 'conta-lhes aquela parábola'.
 Mostra primeiro a extraordinária bondade do pai, que esquece toda a ingratidão, toda a baixeza do culpado para só pensar numa coisa: «O seu filho estava morto, e ressuscitou; estava perdido, e foi achado; por isso se deve regozijar e mandar preparar imediatamente um banquete».
 Nosso Senhor podia ter ficado por aqui na exposição da parábola, se a sua intenção fosse apenas fazer brilhar, aos nossos olhos, a misericórdia do pai de família para com o pródigo. Realmente, esta misericórdia é tão grande, que não a podemos imaginar maior; comove-nos tanto, deixa-nos tão assombrados, que prende toda a nossa atenção e as mais das vezes perdemos de vista a lição que Jesus queria dar aos murmuradores, aos que blasfemavam da Sua maneira de tratar com os pecadores. Continuando a parábola, mostra-nos a atitude odiosa do filho mais velho, que se recusa a tomar parte na alegria geral e a sentar-se à mesa no banquete preparado em honra do irmão.
 Jesus queria mostrar aos fariseus, não só quanto era duro o seu orgulhoso procedimento e desprezível o seu escândalo, mas ainda ensinar-lhes que Ele, nosso irmão mais velho, em vez de evitar o contato com os Seus irmãos arrependidos, os publicanos e pecadores, vai em busca deles e toma parte em suas festas. Porque  'haverá no céu mais alegria pela penitência dum pecador do que pela perseverança de noventa e nove justos que não precisam de se arrepender».
 Por si só, a parábola do filho pródigo constitui uma revelação magnífica das misericórdias divinas. Quis, porém, o nosso Salvador ilustrar este ensinamento e sublinhar esta doutrina com atos de bondade que nos encantam e comovem profundamente.
 Conheceis o colóquio de Jesus com a Samaritana. Foi logo no princípio da vida pública de Jesus. Nosso Senhor ia de Jerusalém para a Galileia. Tendo de percorrer grande distância, partira de manhã cedo, e, por volta do meio dia, chegara perto de Sicar, cidade da Samaria. O santo Evangelho diz-nos que  "Jesus estava cansado»; estava fatigado, como o estaríamos também nós, depois de termos feito uma grande jornada: Fatigatus ex itinere. E «sentou-se simplesmente na borda do poço» de Jacob, que havia naquele sítio: Sedebat sic supra fontem.
 Todas as ações do Verbo Incarnado se revestem de surpreendente beleza, na sua simplicidade; nada de pretencioso ou afetado; apesar de ser Deus, Jesus é igualmente, se assim me posso exprimir, muito humano, no sentido completo e nobre da palavra: Perfectus Deus, perfedus homo. Reconhecemos perfeitamente n'Ele um dos nossos.
 Senta-se, pois, na borda do poço, enquanto os discípulos vão à aldeia próxima buscar víveres. E Ele que ia fazer ali? apenas descansar? esperar que os discípulos voltassem? Não; ia em busca duma ovelha desgarrada, ia salvar uma alma.
 Nosso Senhor Jesus Cristo descera do céu para resgatar as almas: Dedit redemptionem semetipsum pro omnibus. Durante trinta anos, fora obrigado a conter o ardor daquele zelo pelas almas, que O devorava. É certo que trabalhava, sofria e orava por elas; mas não ia ao encontro delas. Agora era chegada a hora em que o Pai queria que Ele iniciasse, para as conquistar a pregação da verdade e a revelação da Sua missão. Nosso Senhor ia a Sicar para salvar uma alma predestinada desde toda a eternidade.
 E quem era essa alma? Com certeza, naquela localidade, fácil seria encontrar muitas menos corrompidas do que a pecadora que queria salvar. E, no entanto, é por ela que espera. Conhece todos os desregramentos, todas as infâmias dessa pobre mulher; e é a ela, de preferência a todas as outras, que se vai manifestar.
 Eis que chega a pecadora, com o cântaro para encher na fonte. Logo Jesus Cristo lhe dirige a palavra. E que diz? Porventura começa logo a censurá-la pelo seu mau comportamento, a falar-lhe dos castigos que merece pela sua vida desregrada? De modo algum; um fariseu era o que faria; mas Jesus procede de modo inteiramente diverso. Toma pretexto do que O rodeia para travar conversa: Da mihi bibere: « Dá-me de beber ». 
A mulher olha para Ele, espantada. Acaba de reconhecer n'Aquele que lhe dirige a palavra um judeu. Ora os judeus desprezavam os samaritanos, e estes detestavam os habitantes da Judeia; entre eles «não havia relações de espécie alguma»:  Non contuntur. «Então como é que tu me pedes de beber?» - diz a Nosso Senhor. E Ele, procurando despertar nela uma santa curiosidade, responde:  «Se conhecesses o dom de Deus»!  Si scires donum Dei!   «Se soubesses quem é que te pede de beber, tu é que lho pedirias, e Ele te daria água viva».
 Esta pobre criatura, mergulhada na vida dos sentidos, nada compreende das coisas espirituais. Cada vez mais admirada, pergunta a si mesma como é que o seu interlocutor poderia dar-lhe água, sem ter com que a tirar, e que água poderia ser melhor do que a daquele poço, onde o patriarca Jacob vinha matar a sede com os seus filhos e os seus rebanhos. 'Por acaso serás tu mais poderoso do que o nosso pai Jacob?" - pergunta ela a Jesus Cristo. Jesus insiste na resposta: "Quem beber da água que Eu lhe der, nunca mais terá sede; terá em si uma fonte de água viva a jorrar até à vida eterna». "Ó Senhor, dá-me dessa água!» -responde a mulher. 
O Salvador faz-lhe então ver que conhece a sua vida desregrada. A pecadora, a quem a graça começa a iluminar, percebe que está em presença de alguém que lê no fundo dos corações: Propheta es tu. E logo a sua alma tocada começa a caminhar para a luz. E pergunta: "Onde é que se deve adorar a Deus, na montanha vizinha ou em Jerusalém?» Sabeis que era este um assunto de interminável disputa entre judeus e samaritanos.
 Jesus Cristo vê surgir naquela alma, no meio da sua corrupção, um vislumbre de boa vontade; é quanto basta para lhe conceder uma graça ainda maior. Porque, apenas vê retidão e sinceridade na busca da verdade, acode com a luz, e compraz-se em recompensar aquele desejo do bem e da justiça. E assim é que vai fazer àquela alma uma dupla revelação. Ensina-lhe que «é chegada a hora dos verdadeiros adoradores em espírito e verdade, procurados pelo Pai»: Pater tales quaerit qui adorent eum; manifesta-se a ela como "o Messias enviado por Deus»: Ego sum qui loquor tecum, revelação que não havia ainda feito a pessoa alguma, nem sequer aos discípulos.
 Não é extraordinário que estas duas grandes revelações tenham sido feitas primeiramente a uma miserável pecadora, cujo único título para ser objeto de tal privilégio era a necessidade da sua salvação e um pouco de boa vontade? ... 
Voltou a mulher justificada; recebera a graça e a fé. "Abandonando o cântaro», foi à cidade pregar o Messias que tinha encontrado. O seu primeiro gesto é fazer conhecer o "dom divino» que se comunicara a ela com tanta liberalidade.
 Entretanto, voltam os discípulos com os víveres. Oferecem-nos ao Mestre: Rabbi, manduca. Que lhes responde Jesus? "Tenho um alimento que vós não conheceis, que é fazer a vontade d'Aquele que me enviou»: Meus cibus est ut faciam voluntatem ejus qui misit me. E qual é a vontade do Pai? "Que todas as almas cheguem ao conhecimento da verdade que conduz à salvação».
 É para isto que trabalha Cristo Jesus. A vontade do Pai é que Jesus Lhe leve as almas que Ele quer salvar, que lhes mostre o caminho, que lhes revele a verdade e assim as conduza à vida: Omne, quod dat mihi Pater, ad me veniet, et eum qui venit ad me non ejiciam foras. Eis toda a obra de Jesus.
 A pecadora de Sicar nada tinha que a distinguisse das outras, a não ser a enormidade da sua miséria; mas era atraída a Jesus Cristo pelo Pai. O Senhor recebe-a,  ilumina-a,  santifica-a, transforma-a e fez dela sua apóstola: Et eum qui venit ad me non ejiciam foras. Porque "a vontade d'Aquele que me enviou é que não perca nenhum dos que me deu, mas que os ressuscite» para a graça, neste mundo, até que, «no último dia», os venha a ressuscitar para a glória. 
A Samaritana é uma das primeiras almas que Jesus ressuscita para a graça. Madalena é outra, e quanto mais gloriosa!
 Erat in civitate peccatrix. «Em certa povoação, vivia uma mulher de má vida». É assim que, no Evangelho, começa a sua história: pela afirmação das suas desordens. A profissão de Madalena era entregar-se ao pecado, tal como a profissão do soldado é viver sob as armas, a do politico dirigir os destinos do Estado. Os seus desregramentos eram notórios. Sete demônios, símbolo do abismo a que tinha descido, haviam escolhido a sua alma para morada. 
Um dia, Jesus é convidado para ir a casa de Simão Fariseu. Apenas se senta à mesa, logo a pecadora, com um vaso de alabastro cheio de perfume, ínrrompe pela sala do banquete. Aproximando-se de Jesus, «lança-se-Lhe aos pés, desfeita em pranto, rega-os com suas lágrimas enxuga-os com seus cabelos, beija-os e derrama sobre eles o perfume que trazia».
 Logo que a viu entrar, o fariseu, escandalizado, disse de si para consigo: 'Oh! se Ele soubesse quem é esta mulher e o que ela é, não consentiria ver a seus pés semelhante pecadora! Quae et qualis est mulier, quae tangit eum, quia peccatrix est!  Está visto que não é profeta'. «Tomando a palavra» (notai o termo respondens; o fariseu nada dissera em voz alta, mas Jesus Cristo responde ao seu pensamento íntimo), Jesus faz-lhe a pergunta que já conheceis. 'Entre dois devedores insolventes, a quem o credor perdoa as dívidas, qual deles lhe mostrará maior amor? - Aquele, responde Simão, cuja dívida for maior. - Pensaste bem, replica Jesus. - E, voltando-se para a Madalena: "Vês esta mulher?» Esta mulher, que é, realmente, uma pecadora e que, no fundo do teu coração, desprezavas, <
 Madalena, a pecadora, tornou-se o triunfo da graça de Jesus, um dos mais magníficos troféus do Seu precioso Sangue. 
Esta compaixão do Verbo Incarnado pelos pecadores é tão grande, que Ele parece, por vezes, esquecer os direitos da Sua justiça e santidade. Os inimigos de Jesus conheciam-na tão bem, que chegam até a armar-Lhe ciladas neste sentido.
 Apresentam-Lhe uma mulher adúltera. É impossível negar o crime ou diminuir-lhe a gravidade; o Evangelho diz-nos que a culpada fora surpreendida em flagrante delito. Segundo a lei de Moisés, devia ser apedrejada. Os fariseus, conhecendo a bondade de Jesus, esperam que Ele absolva aquela mulher, o que seria pôr -se em oposição ao legislador: Tu ergo, quid dicis?
 Mas, se Jesus é a bondade em pessoa, é também a Sabedoria eterna. Primeiro, nada responde à perversa insinuação dos acusadores. Estes insistem. E Nosso Senhor diz-lhes: 'Aquele de entre vós que estiver sem pecado seja o primeiro a atirar-lhe a pedra». Uma tal resposta confunde os Seus inimigos, que não têm outro remédio senão retirar-se um após outro.
 Jesus fica só com a delinquente. Acham-se em presença apenas uma grande miséria e uma grande misericórdia. E eis que a misericórdia se inclina para a miséria: "Mulher, onde estão os teus acusadores? Ninguém te condenou»? - 'Ninguém, Senhor" - «Também eu te não condeno; vai, e não tornes a pecar».
 A bondade de Jesus pareceu tão excessiva a certos cristãos da primitiva Igreja, que este episódio foi suprimido em muitos manuscritos dos primeiros séculos. Mas é bem autêntico e foi introduzido no Evangelho por vontade do Espírito Santo. 
Todos estes  exemplos da bondade do Coração de Jesus são apenas manifestações doutro amor mais elevado: o amor infinito do Pai celeste para com os pobres pecadores. Nunca esqueçamos que devemos ver no que Jesus faz como homem uma revelação do que faz como Deus, em união com o Pai e o Seu comum Espírito. Jesus recebe os pecadores e perdoa-lhes; é o próprio Deus que, sob forma humana, se inclina para eles e os recebe no seio da Sua eterna misericórdia. 

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