19 de novembro de 2016

Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

I

Sabeis que foi logo depois do pecado dos nossos primeiros pais, na origem da raça humana já rebelde, que Deus começou a revelar o mistério da Incarnação. Adão e Eva, cheios de vergonha e desespero pela falta que haviam cometido, prostram-se diante do Criador e não ousam levantar os olhos ao céu. E eis que, antes mesmo de pronunciar a sentença que os expulsa do paraíso terrestre, Deus lhes faz ouvir as primeiras palavras de perdão e esperança.
Em lugar de serem amaldiçoados e expulsos para sempre da presença de Deus, como foram os Anjos rebeldes, eles terão um Redentor que aniquilará o poder que o demônio sobre eles adquiriu. E como o pecado deles começou pela prevaricação da mulher, esta Redenção será operada pelo filho duma mulher:  lnimicitias ponam inter te et mulierem, et semen tuum et semen illius: ipsa
conteret caput tuum.
É o que se chama o «Prato-evangelho»: a primeira palavra da salvação. É a primeira promessa da Redenção, a aurora das misericórdias divinas para com a terra pecadora, o primeiro raio dessa luz que deve um dia vivificar o mundo, a primeira manifestação do mistério oculto em Deus desde toda a eternidade.
Depois desta promessa, toda a religião da raça humana e, mais tarde, toda a religião do povo escolhido se concentra em volta «desse fruto da mulher», desse semen mulieris  que deve libertar os homens.
À medida que os anos passam e os séculos se sucedem. Deus confirma a Sua promessa, repete-a com mais solenidade. Assegura aos patriarcas, Abraão, lsaac e Ja­cob. que é da sua raça que sairá o fruto abençoado:  Et benedicentur in semine tuo omnes gentes terrae;  mostra a Jacob moribundo que é da tribo de Judá que sairá «Aquele que deve vir, o objeto das aspirações de todos os povos»:  Donec veniat qui mittendus est, et ipse erit exspectatio gentium.
As nações, esquecendo as revelações primitivas, abismam-se insensivelmente no erro. Deus escolhe então um povo que será o depositário das Suas promessas; durante séculos lembrará  a  este povo essas promessas: renová-las-á, tornando-as cada vez mais claras e abundantes: será a era dos profetas.
Se percorrerdes os oráculos sagrados dos profetas de Israel, vereis que os traços com que Deus pinta a  pessoa do Messias futuro e nota os caracteres da Sua missão são, por vezes, tão opostos, que parece não ser possível encontrarem-se na mesma pessoa. Os profetas ora atribuem ao Redentor prerrogativas que só podem convir a um Deus, ora predizem para esse Messias um
acervo de humilhações, de contradições, de enfermidades e de sofrimentos que não mereceria padecer o último dos homens.
Constantemente encontrareis este contraste surpreendente.
Vejamos. por exemplo, David, o rei querido do coração de Deus. O Senhor jura firmar-lhe a sua raça para sempre: o Messias será da família real de David. Deus mostra-o a David como «seu Filho  e seu Senhor: seu Filho pela Humanidade que tirará um dia duma virgem da sua estirpe ; seu Senhor pela Divindade. David contempla-O nos esplendores santos, gerado  eternamente antes do romper da aurora, Pontífice supremo segundo Melquisedeque, sagrado para reinar sobre nós pela Sua doçura, pela Sua verdade e pela Sua justiça»; numa palavra, «o próprio Filho de Deus, a quem serão dadas em herança todas as nações»: Dominus dixit ad  me:  Filius meus es tu, ego hodie ge­nui te: postula a me et dabo tibi gentes haereditatem tuam. S. Paulo faz notar aos hebreus que estas prerrogativas são próprias só dum Deus.
Mas David contempla «as Suas mãos e pés traspassados, as suas vestes repartidas, a túnica deitada  à sorte: vê-O  saciado de fel e vinagre» . Depois, eis de novo os atributos divinos: «A corrupção do túmulo não  O  atingirá: mas, vencedor da morte, sentar-se-á  à  direita. de Deus».
Este contraste não é menos notável em Isaías, o grande Vidente, tão preciso e facundo, que poderíamos chamar-lhe o quinto Evangelista; dir-se-ia que relata fatos já passados e não que profetiza acontecimentos futuros.
O  profeta, transportado aos céus, proclama «inenarrável» a geração deste Messias:  Generationem ejus qui enarrabit.  Dá-lhe nomes que jamais homem algum teve: «Será chamado o Admirável,  o  Deus forte, o Pai do século futuro, o Príncipe da Paz ; gerado duma virgem, será chamado Deus conosco,  Emma­nuel. Isaías descreve-O  «levantando-se  como uma aurora brilhante como um facho» ;  vê-O «dar vista aos cegos, ouvido aos surdos, fala aos mudos, andar aos coxos» ; mostra-o constituído < chefe e preceptor das nações pagãs» ; vê «os ídolos caírem diante dele», e ouve Deus prometer com juramento que «diante deste Senhor todo o joelho se dobrará e toda a
língua confessará o Seu poder».
E,  no entanto, este Redentor, que o profeta assim exalta, há de ser acabrunhado de tais sofrimentos, aniquilado por humilhações tais, que será considerado como o último dos homens, como um leproso, castigado por Deus e abismado no opróbio; levado à  morte como um cordeiro, posto no rol dos malfeitores, porque aprouve ao Senhor esmagá-lo com a enfermidade.
Podereis confrontar, na maior parte dos profetas, esta oposição de termos com que descrevem as grandezas e o aniquilamento, a força e a fraqueza, os sofrimentos e a glória do Messias. Vereis com que condescendente sabedoria Deus preparava os ânimos para a revelação dum Homem Deus, ao mesmo tempo Senhor supremo adorado por todas as nações e Vítima dos pecados do mundo.
A economia da misericórdia divina, como sabeis, baseia-se inteiramente na fé; esta é a «base e a raiz de toda a justificação». Sem fé, nem a própria presença material de Jesus Cristo poderia produzir nas almas a plenitude dos Seus efeitos.
Ora a fé é-nos comunicada pela ação interior do Espírito Santo que acompanha a exposição das verdades divinas, feita pelos profetas e pregadores:  Fides ex auditu .
Lembrando tantas vezes as Suas primitivas promessas, revelando pouco a pouco, pela voz dos profetas. os traços do Redentor futuro, quis Deus fazer brotar nos corações dos justos do Antigo Testamento as disposições necessárias para que a vinda do Messias lhes apro­veitasse. E assim, quanto maior era a fé e a confiança dos justos da Antiga Aliança nas promessas anunciadas pelos profetas, mais eles ardiam no desejo de as ver realizadas, e mais preparados estavam para receber a abundância das graças que o Salvador devia trazer ao mundo.
Foi por isso que a Virgem Maria, Isabel, Zacarias, Simeão, Ana e as outras almas fiéis que viviam no mundo no momento da vinda de Jesus Cristo, O reconheceram e imediatamente foram inundados das Suas graças.
Vedes como Deus quis preparar os homens para a vinda de Seu Filho  à  terra. S. Pedro podia com razão dizer aos judeus que eles eram «os filhos dos profe­tas, e S. Paulo podia escrever aos hebreus «que antes de os ensinar por Seu próprio Filho. Deus falara a seus pais pela voz dos profetas, muitas vezes e de diversas maneiras  » :  Multifariam multisque  modis.
Por este motivo, os judeus fiéis esperavam constantemente o Messias. A sua fé mostrava.-lhes na pessoa daquele Redentor um enviado divino, um rei, um Deus, que devia acabar com as misérias e aliviá.-los do peso das suas faltas. Só têm uma aspiração: «Enviai, Senhor, aquele que há-de vir>>. Só têm um desejo: contemplar a face do Salvador de Israel. O Messias prometido era o objeto para o qual convergiam todos os anelos, todos os desejos, todo o culto e toda a religião da Antiga
Aliança; o Antigo Testamento é um Advento prolongado, cujas orações se resumem neste apelo de Isaías: Emitte Agnum, Domine, Dominatorem terrae: «En­viai, Senhor, o Cordeiro que há de reinar sobre toda a terra ; que os céus derramem o orvalho e nos dêem o justo>>:  Rorate caeli desuper, et nubes pluant justum: « Abra-se a terra e germine o Salvador » ;  Aperiatur terra et germinet Salvatorem !

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