19 de abril de 2011

Excertos - Confissões de Santo Agostinho

[Em Deus reside toda a esperança]

XXIX. 40. E toda a minha esperança não está senão na imensidão da tua misericórdia. Concede-me o que ordenas e ordena-me o que queres. Exiges de nós a continência. Diz alguém: E sabendo eu que ninguém pode ser continente se Deus não lho conceder, era já fruto da sabedoria o saber de quem era este dom 226. Efectivamente, pela continência saímos da dispersão e somos  reconduzidos à unidade, da qual nos dissipámos em muitas coisas. Na verdade, ama-te menos aquele que, ao mesmo tempo que a ti, ama alguma coisa, que não ama por causa de ti. Ó amor que ardes continuamente e nunca te extingues, caridade, ó meu Deus, inflama-me! Ordenas a continência: concede-me o que ordenas e ordena-me o que queres.

[Agostinho confessa como enfrenta as tentações da carne]

XXX. 41. Sem dúvida, ordenas-me que me abstenha da concupiscência da carne, e da concupiscência dos olhos, e da ambição do século227. Ordenaste-me que me abstenha do prazer da carne, e, em relação ao próprio matrimónio, que tu permitiste, aconselhaste-me uma coisa melhor228. E, porque mo concedeste, aconteceu, ainda antes de eu me tornar administrador do teu mistério229. Mas ainda vivem na minha memória, sobre a qual tanto falei, imagens dessas tais coisas que o meu hábito nela fixou, e, embora desprovidas de forças, vêm ao meu encontro quando estou acordado, mas, durante o sono, chegam não só ao deleite, mas também ao consentimento e a um efeito absolutamente igual. A ilusão na minha alma tem tanto poder na minha carne que, estando eu a dormir, as falsas visões levam-me àquilo que, estando acordado, as verdadeiras não conseguem. Acaso, Senhor meu Deus, não sou eu nesse momento? E, todavia, é tão grande a diferença entre mim e mim mesmo, naquele momento em que passo da vigília ao sono e volto a passar do sono à vigília! Onde está, pois, a mente, graças à qual uma pessoa acordada resiste a tais sugestões e, se as próprias coisas se lhe deparam, permanece inabalável? Porventura fecha-se a mente ao mesmo tempo que os olhos? Porventura adormece com os sentidos do corpo? E porque é que, muitas vezes, mesmo no sono, resistimos, e, lembrados do nosso propósito, e nele permanecendo castissimamente, não damos nenhum assentimento a tais tentações? E, todavia, é tão a grande a diferença que, quando sucede de outro modo, ao acordarmos, voltamos à tranquilidade da consciência, e, pela mesma diferença, descobrimos que não fizemos aquilo que todavia lamentamos de certo modo ter sido feito em nós.


42. Acaso não é poderosa a tua mão, ó Deus omnipotente 230, para sarar todas as enfermidades231 da minha alma e até para extinguir, por maior abundância da tua graça, todos os movimentos lascivos do meu sono? Aumentarás, Senhor, mais e mais, em mim, os teus dons para que a minha alma, liberta do visco da concupiscência, me siga até junto de ti, para que ela não seja rebelde para consigo, e para que, mesmo no sono, não só não cometa tais torpezas de corrupção, por meio de imagens sensuais, até ao fluxo da carne, mas nem sequer nelas consinta. Na verdade, que tal coisa nada me deleite, ou tão pouco quanto possa ser impedido pela vontade, também no casto afecto de quem dorme, não só nesta vida mas também nesta idade, não é grande coisa para ti, tu que és omnipotente e podes ir além daquilo que pedimos e compreendemos232. Agora, porém, o que ainda sou, neste género de mal que é o meu, já to disse, a ti que és o meu bom Senhor, exultando com tremor 233 naquilo que me deste, e lamentando-me naquilo que ainda não consegui, esperando que completes em mim as tuas misericórdias234, até à paz total que em ti terá tudo aquilo que eu sou dentro e fora de mim, quando a morte for absorvida na vitória 235.
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226 Sabedoria 8:21.
227 1 João 2:16.
228 1 Coríntios 7:38.
229 1 Coríntios 4:1.
230 Números 11:25.
231 Salmo 102:3; Mateus 4:23.
232 Efésios 3:20.
233 Salmo 2:11.
234 Salmo 102:6.
235 Isaías 25:8; 1 Coríntios 15:54.

CONFISSÕES de Santo Agostinho - Livros VII, X e XI
Tradutores : Arnaldo do Espírito Santo / João Beato / Maria Cristina Castro-Maia de Sousa Pimentel
http://www.lusosofia.net/textos/agostinho_de_hipona_confessiones_livros_vii_x_xi.pdf


 

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