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27 de março de 2024

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo Piedosas e edificantes meditações sobre os sofrimentos de Jesus

CAPÍTULO II

Reflexões particulares sobre os padecimentos de Jesus Cristo na sua morte

O homem das dores.
1. Vamos considerar as penas particulares que Jesus Cristo sofreu na sua paixão e que já há muitos séculos foram preditas pelos profetas, especialmente por Isaías no capítulo 53. Este profeta, como dizem S. Ireneu, S. Justino, S. Cipriano, e outros falou tão claramente dos sofrimentos de nosso Redentor, que parece ser um outro evangelista. S. Agostinho afirma que as palavras de Isaías, referentes
à paixão de Jesus Cristo, requerem mais as nossas reflexões e lágrimas que explicações dos sagrados intérpretes. Hugo Grotius escreve que os próprios judeus antigos não puderam negar que Isaías falava do Messias prometido por Deus (De ver. relig. Cti. l.5, § 19). Alguns quiseram aplicar os passos de Isaías a outros personagens nomeados nas Escrituras, fora de Jesus Cristo. Mas diz Grotius: “Quem poderá nomear um dos reis ou dos profetas a quem quadrem essas coisas? Seguramente ninguém”. Assim escreve esse autor, apesar de ele mesmo ter várias vezes tentado aplicar a outras pessoas as profecias que falavam do Messias. Isaías escreve: “Quem deu crédito ao que nos ouviu? E a quem foi revelado o braço do Senhor?” (53,1). Isso se realizou exatamente, como diz S. João, quando os judeus, não obstante terem visto tantos milagres operados por Jesus Cristo, que bem o mostravam como o Messias enviado por Deus, não quiseram crer nele (Jo 12,37-38). Quem dará crédito a quanto foi por nós ouvido? perguntava Isaías, e quem reconheceu o braço, isto é, o poder do Senhor? Com essas palavras predisse Isaías a obstinação dos judeus em não querer crer em Jesus Cristo como o seu Redentor. Figurava-se-lhes que o Messias deveria circundar-se neste mundo de uma grande pompa, vivendo entre homens de sua grandeza e poder, triunfando de todos os seus inimigos, enchendo de riquezas e honras o povo judeu. Mas a coisa era outra. O profeta ajunta as palavras acima referidas: “Subirá como arbusto diante dele e como raiz que sai de uma terra sequiosa” (Is 52,2). Julgavam os judeus que o Salvador deveria aparecer qual soberbo cedro do Líbano. Isaías, porém, predisse que se faria ver como um arbusto humilde ou como uma raiz que nasce de uma terra árida, privada de toda a beleza e esplendor: “Não tem beleza nem formosura!”
2. Continua então Isaías a descrever a paixão de Jesus Cristo: “E nós o vimos e não tinha aparência e nós o desejamos” (Is 53,2). Tendo-o contemplado, desejamos reconhecê-lo, mas não o pudemos, porque nada mais divisamos que um homem de dores: “Um objeto de desprezo e o último dos homens, um homem de dores... por isso nenhum caso fizemos dele” (Is 53,3). Adão, pelo orgulho de não querer obedecer ao preceito divino, trouxe a ruína para todos os homens. O Redentor, com sua humildade, quis curar uma tal desgraça, contentando-se com ser tratado com o último e mais abjeto dos homens, reduzido a extrema baixeza. Isso faz S. Bernardo exclamar: “Ó baixíssimo e altíssimo! ó humilde e sublime! ó opróbrio dos homens e glória dos anjos! Ninguém mais sublime que ele, ninguém mais humilde” (Serm. 37). Se, pois, o Senhor mais alto que todos, ajunta o santo, se tornou o mais baixo, nenhum de nós deve ambicionar ser anteposto aos demais e temer ser preferido por alguém. Eu, porém, ó meu Jesus, tenho medo de ser posposto a alguém, e desejaria ser preferido a todos. Senhor, dai-me humildade. Vós, meu Jesus, com tanto amor abraçais os desprezos, para ensinar-me a ser humilde e amar a vida oculta e abjeta e eu quero ser estimado por todos e fazer figura em tudo. Ah, meu Jesus, dai-me o vosso amor, que ele me tornará semelhante a vós. Não me deixeis viver mais ingrato ao amor que me dedicais. Vós sois o todo poderoso, tornai-me humilde, tornai-me santo, tornai-me todo vosso. “O varão de dores”, denominou-o ainda Isaías. A Jesus Crucificado muito bem se aplica o texto de Jeremias: “Grande como o mar é a tua dor” (Lm 2,13). Como no mar deságuam todas as águas dos rios,
assim em Jesus Cristo se reuniram para atormentá-lo todas as dores dos enfermos, todas as penitências dos anacoretas e todas as contusões e vilipêndios suportados pelos mártires. Ele foi cumulado de dores na alma e no corpo. “E todas as tuas ondas fizeste vir sobre mim” (Sl 87,8). Meu Pai, dizia nosso Redentor pela boca de Davi, dirigistes sobre mim todas as ondas de vosso desprezo e na morte afirmava que expirava submerso num mar de dores e de ignomínias: “Cheguei ao alto mar, e a tempestade me submergiu” (Sl 68,3). Escreve o Apóstolo que Deus, mandando seu Filho pagar com seu sangue as penas devidas às nossas culpas, queria com isso demonstrar quão grande era a sua justiça. “Jesus Cristo, a quem Deus propôs para ser vítima de propiciação pela fé em seu sangue, a fim de manifestar a sua justiça” (Rm 3,25). Notai, para manifestação de sua justiça!

Em forma de escravo.
1. Para fazer idéia do quanto padeceu Jesus Cristo durante sua vida e especialmente na sua morte, é preciso considerar o que disse o mesmo Apóstolo na carta aos Romanos: “Deus, enviando seu Filho em carne semelhante à do pecado, condenou o pecado na carne por causa do mesmo pecado” ( Rm 8,3). Jesus Cristo, enviado pelo Pai a remir o homem, revestido da carne infecta do pecado de Adão, apesar de não ter contraído a mancha do pecado, contudo tomou sobre si as misérias contraídas pela natureza humana em castigo do pecado, e se ofereceu ao Padre eterno a satisfazer com suas penas a justiça divina por todas as culpas dos homens: “Foi oferecido porque ele mesmo quis” e o Pai “carregou sobre ele a iniqüidade de todos nós”, como escreve Isaías (53,7 e 6). Eis, pois, Jesus carregado com todas as blasfêmias, com todos os sacrilégios, torpezas, furtos, crueldades, com todas as malvadezas que cometeram e cometerão ainda todos os homens. E ei-lo em suma feito o objeto de todas as maldições divinas aos homens por seus crimes. “Cristo nos remiu da maldição da lei, fazendo-se por nós maldito” (Gl 3,13). As dores, que Jesus sofreu, tanto internas como externas, sobrepujaram imensamente todas as possíveis nesta vida (III q. 46 a. 6). Quanto à dor externa do corpo, basta saber que Jesus recebeu do Pai um corpo adaptado especialmente para sofrer. “Preparastes-me um corpo” (Hb 10,5). Nota S. Tomás que Nosso Senhor padeceu no tato, pois lhe foram rasgadas as carnes; no gosto, com fel e vinagre; no ouvido, com as blasfêmias e zombarias que lhe dirigiam; na vista, vendo sua mãe assisti-lo na morte. Padeceu também em todos os seus membros: a cabeça foi atormentada com os espinhos, as mãos e os pés com os cravos, a face com as bofetadas e escarros, todo o seu corpo com os açoites, na maneira já indicada por Isaías, isto é, que o Redentor na sua paixão ia se tornar semelhante a um leproso, que não possui um membro são, causando horror a quem o vê, por ser uma só chaga da cabeça aos pés. Basta dizer que Pilatos julgou poder livrar Jesus da morte, apresentando-o ao povo depois de flagelado, e por isso o conduziu à varanda, dizendo: “Eis aqui o homem”. S. Isidoro diz que os homens, quando a dor é intensa e persistente, perdem a sensação da dor pela agudeza da própria dor. Mas isso não se deu com Jesus: as últimas dores foram igualmente mais atrozes como as primeiras e os primeiros golpes da flagelação foram tão dolorosos quanto os últimos, porque a paixão de nosso Redentor não foi obra dos homens, mas da justiça de Deus, que quis castigar o Filho com todo o rigor que mereciam os pecados dos homens. E assim, meu Jesus, com a vossa paixão quisestes relevar-me a pena que por meus pecados me era devida. Por isso, se eu vos tivesse ofendido menos, menos teríeis de padecer na vossa morte. E eu, cônscio disso, poderei viver para o futuro sem vos amar e sem chorar as ofensas que vos fiz? Meu Jesus, arrependo-me de vos haver desprezado e amo-vos sobre todas as coisas. Logo, não me desprezeis: permiti que vos ame, pois não quero mais amar senão a vós. Muitíssimo ingrato seria eu se, depois de tantas misericórdias usadas para comigo, amasse no futuro outro objeto além de vós. 2. Eis como Isaías anunciou tudo de antemão: “E nós o reputamos como um leproso, ferido por Deus e humilhado. Mas ele foi ferido pelas nossas iniqüidades, foi quebrantado pelos nossos crimes: o castigo que nos devia trazer a paz caiu sobre ele e nós fomos curados por suas contusões. Todos nós andamos desgarrados, como ovelhas, cada um se extravia por seu caminho; e o Senhor carregou sobre ele a iniqüidade de todos nós” (Is 53,4-6). Jesus, cheio de caridade, de boa vontade, se ofereceu, sem réplica, a executar a vontade do Padre, que queria vê-lo dilacerado pelos carnífices a seu bel-prazer: “Foi oferecido porque ele mesmo o quis e não abriu sua boca... e, como um cordeiro diante do que o tosquia, não abriu sua boca” (Is 53,7). Como um cordeiro que se deixa tosar sem se lamentar, assim nosso amoroso Salvador em sua paixão deixou-se tosar, isto é, arrancar-lhe a pele sem abrir a boca. Que obrigação tinha ele de satisfazer por nossos pecados? Nenhuma, e contudo quis sobrecarregar-se deles para livrar-nos da condenação eterna. Cada um de nós, pois, tem obrigação de ser-lhe grato e dizer-lhe: “Vós, porém, livrastes a minha alma para que ela não perecesse; lançastes para trás de vossas costas todos os meus pecados” (Is 38,17). E assim fazendo-se Jesus voluntariamente fiador de todas as nossas dívidas, por sua bondade, quis sacrificar tudo por nós, até dar a vida entre as dores da cruz, como ele mesmo o atesta em S. João: “Eu ponho minha vida... ninguém a tira de mim, mas eu de mim mesmo a ponho” (Jo 10,17).
Continua...

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